II - PENSAMENTOS POLÍTICOS
Do seu caráter participativo e de formador de opinião, repito, só é possível falar-se dedutivamente, à míngua de registros pessoais que compreendam 1800 a 1817, à exceção do que, segundo palavras de Gustavo Barroso , ele teria, acompanhado dos padres João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro e Luiz José Cavalcanti Lins, iniciado na Ordem Maçônica, em Lisboa, a 1807, e composto determinada Loja pernambucana no ano de 1809. Por sua vez, o irmão maçom Assis Carvalho (O Xico Trolha) comunica, sem citar a data, que tal iniciação teria se dado em Montpellier (França), na Loja “Academia dos Verdadeiros Maçons”, a exemplo dos estudantes brasileiros José Joaquim da Maia, José Álvares Maciel, Domingos Vidal Barbosa, Frei Arruda Câmara, Padre Roma e Domingos José Martins.
Confira-se, dada a importância, a dicção de Gustavo Barroso:
O que há entretanto de positivo, por constatação histórica sobre a introdução da maçonaria no Brasil é que em 1809 se criara uma loja maçônica em Pernambuco, com intuitos puramente políticos, como núcleo para a instalação de outras e da qual faziam parte nomeadamente, os padres Miguel Joaquim de Almeida Castro, João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro e Luiz José Cavalcanti Lins, os dois primeiros lentes do seminário de Olinda e o terceiro vigário de Santo Antônio do Recife, iniciados maçons em Lisboa, no ano de 1807.E o nosso irmão A. Tenório d’Albuquerque afirma ter o Desembargador José Albano Fragoso qualificado Miguelinho como maçom em uma correspondência endereçada ao Príncipe Regente D. João VI, tratando da condenação do Padre.
É nos pólos desse hiato temporal que vamos encontrar nele e a seu respeito opiniões antípodas e controversas, marcantes de sua posição ideológica. Assim eu falo depois da leitura dos seus escritos que me chegaram à ciência, quais: a “Oração”, a “Proclamação ao Povo de Pernambuco”, além de outras proclamações feitas (a primeira, em seguida ao anúncio do Governo Provisório revolucionário, e as demais, no correr do movimento separatista), acrescidas de alguns relatos e comentários levados a termo por historiadores. De todos os que li, cito, procurando respeitar o máximo possível a ordem cronológica, os excertos a seguir reproduzidos (ou mesmo o pronunciamento total, no caso da “Proclamação ao Povo”), melhores ao significado da presente assertiva.
Principio por trechos da “Oração Acadêmica”, ministrada, é sabido, no ano de 1800:
Sim, senhores, he hoje que consumados em parte os grandes trabalhos do Sr. D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coitinho, nosso muito digno Pontifice, se levantam das ruinas de um antigo edificio um novo Templo para as sciencias, hum novo Pantheon para as Musas e hum eterno monumento para a sua gloria. (...) Mecenas ao pé de Augusto no seculo ditoso da Literatura Romana, Colbert ao pé de Luiz XIV na epocafelis do restabelecimento das letras na França não fizeram mais do que ele junto ao Grande Principe, que nos governa, afim de estabelecer, afirmar em Pernambuco, a proveitosa cultura das Sciencias.Prossigo mencionando contingências ocorridas 17 anos depois (importando salientar o intervalo histórico), nos dias 06, 07 e 08 de março de 1817, logo após a rebentação do levante pernambucano (no dia 06) provocada pela morte do português Manoel Joaquim Barbosa, chefe da artilharia (perpetrada por José de Barros Lima: o “Leão Coroado”), e de Alexandre Tomaz, ajudante-de-ordens do Governador da província, Caetano Pinto de Miranda Montenegro. A partir desses dois eventos, aconteceu, fazendo par com ocorrências menos importantes, o refúgio do Governador, com a sua família, na fortaleza do Brum; e, em simultaneidade, a abertura às portas da cadeia pública para a liberdade de todos os detentos, réus de polícia, que se encontravam em cumprimento de penas regulares, a quem foram fornecidas armas de fogo. Assim precipitados os fatos, trataram os líderes revoltosos de se reunir com o fim de planear as providências a tanto necessárias. Dessa reunião e seus desdobres ressalto as narrativas abaixo e opiniões registradas pelos historiadores:
Ele bem sabe que sam elas as que formam a verdadeira gloria dos Povos, que apertam os claros indissoluveis da sociedade que nos mostram os direitos inalienaveis de Deos, e de Cesar, e que constituem e firmam os grandes fundamentos da Religiam e do Estado, do sacerdocio e do Imperio. Ele sabe que sem as sciencias, perdida a força das Leys, alterados os direitos, confundidos os poderes, e arruinadas as bases da Republica, caminha tudo a submergir-se n’hum orrorosocahos, n’huma anarquia funesta, n’hum despotismo insuportavel, n’huma liberdade perniciosa, e finalmente n’hum precipicioinevitavel. Isto não sam, meus senhores, pinturas pitorescas de huaimaginasam esquentada, sam efeitos já tristemente observados, de que axamosindubitaveis monumentos na historia dos passados seculos.
(...)
Luiz XVI debaixo do ferro da guilhotina hé um espectaculomaisorroroso do que dés reis sucessivamente sacrificados á furia da impia e infernal Brunehaut, que enxeo em outro tempo a França de orrores e foi a Authora de mil crimes igualmente funestos ao Povo Frances, que a Real Familia de Clovis? Luiz XVI finalmente, debaixo do ferro da guilhotina hécapás de nos inspirar maisorror do que Henrique 3º assassinado pelas mãons parricidas de humDominico? As interpresas e roubos da Assembléa Nacional contra a Casa de Bourbon foram mais ilegais, mais injustas, mais tiranas do que os procedimentos e atentados dos antigos Mayres do Povo contra a Casa Merovingiana? As mortes, os incendios, as profanaçoens destes dias funestissimos, que tem visto Paris, tem sido maisorrorosos, e exiciaes do que os da tenebrosissima noite de S. Bartolomeu? Mas que, meus Senhores, sou eu porventura apologista deses insensatos Monarcomacos, inimigos dos Reys e da Patria, das Leys e da sociedade? Nam, senhores, confesso os seoscrimes; a crua barbaridade; o seo erro; a sua doutrina; e sentimentos incendiarios; porém, crimes, barbaridades e erros, doutrina e sentimentos, menos xeios de orror do que eses que inspira a ignorancia e o fanatismo.
Pode-se abusar das sciencias; hé verdade, mas ese mesmo abuso hé menos pernicioso e criminal do que os efeitos tristissimos de huaignorancia cega. A sabedoria ainda no ponto de seomayor abuso só xega até dar ao vicio as cores aparentes da virtude, desmascarar os maisfeyos atentados contra o Rey e contra a Patria, com o véospecioso (e enganador) de Liberdade e Patriotismo; mas esa mesma necessidade em que as Luses da Razam tem posto os criminosos e os malvados de ocultarem o seo negro caracter debaixo de imagens impostoras, serve de mayor elogio as mesmas sciencias, e a verdade. E se a França libertina e escandalosatem aprendido a arte detestavel de abusar das grandes Luzes das sciencias, e das Artes, o noso Portugal, a Inglaterra, e o Imperio, armados da verdadeira sabedoria e da saã Politica não tem sido as firmes muralhas de onde se tem vindo desfazer todos os seos plainos revolucionarios?
Deste modo pensavam os oficiais comprometidos: tratava-se de consertar os meios do ataque, e a oportunidade do dia, e hora. Para este fim convidaram os cidadãos, nos quais confiavam encontrar retidão de juízo e com eles reuniram-se de noite em casa da guarda do Erário. O Padre João Ribeiro Pessoa, o Padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro (...), Jacome Bezerra, vigário de S. Pedro Gonçalves, Felipe Neri Ferreira (...), e Antônio Gonçalves da Cruz, foram os convidados: todos unânimes opinaram que ao amanhecer do dia se atacasse a mencionada fortaleza, se proclamasse ao povo a justiça da insurreição, e que imediatamente marchasse para a cidade de Olinda o tenente José Mariano, e o capitão de artilharia Amaro Francisco de Moura com uma patrulha de trinta homens para impedir qualquer tentativa de socorro, que dali pudesse vir ao Governador.Anotação consignada por Oliveira Lima a esse trecho da Obra de Muniz Tavares:
XXXVII.Supostas falas do líder revolucionário Domingos Martins, romanceadas pelo historiador Paulo Santos de Oliveira, alusivas à reunião antes mencionada:
O padre Miguelinho fez-se notar durante toda a revolução pelo seu espírito evangélico. Tanto a proclamação ao povo, por ele lançada como secretário do governo provisório, é alheia a sentimentos de vingança e até pletórica de efusão, como é repassada de verdadeira unção religiosa e de comovedora eloqüência o sermão por êle pregado por ocasião do Te-Deum cantado na matriz de Santo Antônio.
E Miguelinho completou dizendo que, infelizmente, os matutos são ignorantes, crédulos e fatalistas. Para ele, muitos ainda esperavam a volta do Rei Dom Sebastião, no seu cavalo branco, para dar fim aos seus padecimentos. O espírito dos povos do campo ainda não fora fascinado pelo desejo de Liberdade e havia um abismo a superar entre a magnitude da tarefa e a pobreza dos recursos existentes ...A íntegra da “Proclamação ao Povo”, manifestada em seguida ao anúncio do Governo Provisório, instalado a 08 de março:
(...)
A João Ribeiro coube escrever aos patriotas da capital, e a mim aos nossos irmãos João Luiz Freire e Manoel Clemente, da vila de Itabaiana. Enquanto isso Miguelinho foi preparar uma declaração ao povo pernambucano, explicando e justificando a nossa Revolução.
(...)
Miguelinho começara a escrevê-lo com a justa preocupação de baixar a tensão entre portugueses e brasileiros. Queria acalmar os temores de uns e reduzir o ódio e os ressentimentos dos outros. De saída, pôs a culpa de tudo em ‘alguns espíritos inadvertidos que espalharam as sementes do ciúme e da rivalidade entre os filhos do Brasil e de Portugal’, sem dar nomes a essas almas. E garantiu que ‘as sementes da discórdia desgraçadamente frutificaram, mas nunca cresceram a ponto de não poderem ser extintas’. Concordei com essa abordagem e falei na importância de se destacar o fato de a revolta ter nascido espontânea no meio da tropa e do povo; coisa que realmente acontecera. Miguelinho então escreveu: ‘o espírito do despotismo recorreu às medidas mais violentas e pérfidas, ameaçando perder patriotas honrados e de ensopar nas lágrimas suas míseras famílias’; e ‘a tropa inteira se opôs contra a ruína de alguns oficiais, o grito de defesa foi geral e o povo se tornou soldado e protetor dos soldados, porque eram brasileiros como eles’(...). Eu aprovei, novamente, e disse ser necessário afirmar, agora, que o novo governo não fora planejado. Ele teria nascido de improviso, como uma obra da prudência; e isso era mentira, é claro. Há anos nós chocávamos esse ovo e a casca apenas quebrou antes do tempo, mas era melhor não parecer assim.
Aí as coisas se complicaram...
Miguelinho só falava a verdade, como João Ribeiro; e deu-me um trabalho danado convencê-lo de que é com uma falsidadezinha aqui, uma desonestidadezinha acolá, que se faz política... Foi uma luta para chegarmos, enfim, um meio-termo: ‘Os patriotas acharam-se sem chefe, sem governador, e era preciso precaver as desordens da anarquia no meio de uma povoação agitada e de um povo revoltado...
Habitantes de Pernambuco! A Providência Divina, que pelos seus inescrutáveis desígnios sabe extrair das trevas a luz, mais viva, e pela sua infinita bondade não permite a existência do mal senão porque sabe tirar dele maior bem, e a felicidade, consentiu que alguns espíritos indiscretos, e inadvertidos, de que grandes incêndios se podem originar de uma pequena faísca, principiassem a espalhar algumas sementes de um mal entendido ciúme, e rivalidade, entre os filhos do Brasil, e de Portugal, habitantes desta Capital, desde a época, em que os encadeamentos dos sucessos da Europa entraram a dar ao continente do Brasil aquela consideração, de que era digno, e para o que não concorreram nem podiam concorrer os brasileiros. Porquanto, que culpa tiveramêstes de que o príncipe de Portugal sacudido da sua capital pelos ventos impetuosos de uma invasão inimiga, saindo faminto dentre os seus lusitanos, viesse achar abrigo no franco, e generoso continente do Brasil, e matar a fome, e a sêde na altura de Pernambuco pela quase Divina Providência e liberalidade dos seus habitantes! Que culpa tiveram os brasileiros de que o mesmo príncipe Regente sensível à gratidão quisesse honrar a terra, que o acolhera com a sua residência, estabelecimento da sua Côrte, e elevá-la à categoria de Reino? Aquelas sementes de discórdia desgraçadamente frutificaram em um país, que a natureza amiga dotou de uma fertilidade ilimitada, e geral. Longe de serem extirpadas por uma mão hábil, que tinha para isso todo o poder, e sufocá-las na sua origem, foram nutridas por mútuas indiscrições dos brasileiros, e europeus; mas nunca cresceram a ponto de se não poderem extinguir, se houvesse um espírito conciliador, que se abalançasse a esta emprêsa, que não era árdua. Mas o espírito do despotismo, e do mau conselho, recorreu às medidas mais violentas, e pérfidas que poderia excogitar o demônio da perseguição. Recorreu-se ao meio tirano de perder patriotas honrados e beneméritos da Pátria, de fazê-la ensopar nas lágrimas de míseras famílias, que subsistiam do trabalho, e socorros dos seus chefes, e cuja perda arrastavam consigo irresistivelmente a sua total ruína. A natureza, o valor, a vista espantadora da desgraça, a defesa natural, reagiu contra a tirania, e a injustiça. A tropa inteira se opôs envolvida na ruína de alguns dos seus oficiais; o grito da defesa foi geral; e ele ressoou em todos os ângulos da Povoação de S. Antônio, o povo se tornou soldado, e protetor dos soldados por que eram brasileiros como eles. Os déspotas aterrados pelo inesperado espetáculo, e ainda mais aterrados pela própria consciência, que ainda no seio dos ímpios levanta o seu tribunal, dita os seus juízos, e crava os seus punhais, desampararam o lugar, donde haviam feito sair as ordens homicidas. Habitante de Pernambuco, crede, até se haviam tomado contra os vossos compatriotas meios de assassinar indignos da honra, e da humanidade. Os patriotas no fim de duas horas acharam-se sem chefe, sem governador: era preciso precaver as desordens da anarquia no meio de uma Povoação agitada e de um povo revoltado. Tudo se fêz em um instante; tudo foi obra da prudência, e do patriotismo. Pernambucanos, estaitranqüilos, aparecei na Capital, o povo está contente, já não há distinção entre brasileiros, e europeus, todos se conhecem irmãos, descendentes da mesma origem, habitantes do mesmo País, professôres da mesma religião. Um govêrno provisório iluminado escolhido entre tôdasas ordens do Estado, preside à vossa felicidade; confiai no seu zêlo, e no seu patriotismo. A providência, que dirigiu a obra, a levará ao têrmo. Vós vereis consolidar-se a vossa fortuna, vós sereis livres do pêso de enormes tributos, que gravam sôbre vós; o vosso, e nosso País, subirá ao ponto de grandeza, que há muito o espera, e vós colhereis o fruto dos trabalhos, e do zêlo dos vossos cidadãos. Ajudai-os com os vossos conselhos, êles serão ouvidos; com os vossos braços, a Pátria espera por eles; a vossa aplicação à agricultura, uma nação rica é uma nação poderosa. A Pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus filhos, sois descendentes dos valorosos lusos, sois portuguêses, sois americanos, sois brasileiros, sois pernambucanos.Considerações feitas, respectivamente, por Muniz Tavares e Evaldo Cabral de Melo:
O Governo Provisório confirmou Carlos Mairink (...) no posto de Secretário, que ocupava na decaída administração; e como os negócios do Estado deviam aumentar, dividiu as atribuições daquele para facilidade do expediente, e nomeou outro Secretário, que foi o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, autor da Proclamação que acabamos de transcrever, e com a qual ele retratou fielmente o seu doce caráter, e consumada prudência; aborria os movimentos precipitados, desejava a revolução, não a provocava, queria uma república, mas quando fossem dispostos os elementos, quando os meios de a sustentar se proporcionassem à dificuldade da emprêsa. Não se esquecia da antipatia dos portuguêses contra os brasileiros; mas refletindo que a Pátria precisava de braços, e que com uma violenta expulsão muito se perderia em capitais, imaginando vencer a dureza com a generosidade, de propósito tratou de acarinhá-los (...).”.Notas produzidas por Oliveira Lima, a primeira comparando o comportamento dos irmãos Suassuna com os dos padres João Ribeiro e Miguelinho, e a segunda referindo-se ao recente trecho citado da obra de Muniz Tavares:
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“(...) O manifesto da junta revolucionária, redigido pelo padre Miguelinho, embora desejasse uma revolução, descria dos ‘movimentos precipitados’, querendo ‘uma república mas quando fossem dispostos os elementos’. Ele não defendia mudança imediata de regime, atribuindo a insurreição ao ‘espírito de despotismo’, que tolhera uma empresa conciliatória que ‘não seria árdua’. A organização do governo provisório devera-se a que ‘os patriotas’, achando-se ‘sem chefe, nem governador’, viram-se na necessidade de ‘precaver as desordens da anarquia’.
XLVI.Passo aos acontecimentos posteriores a 17 de março, relacionados às providências de organização e institucionalização do Governo Provisório até à contra-revolta, iniciando pelo debate sobre o teor da Lei Constitucional, cujas principais preocupações e pontos de desinteligência eram, diante da estrutura social contemporânea, a forma como se atribuiria a igualdade de direitos e deveres a todas as classes sem provocar a insatisfação dos “brancos ricos” e obtendo o respaldo popular, além da maneira de se anunciar a novel ordem institucional: se deveria acontecer solene e oficialmente perante todas as autoridades e classes ou se deveria haver cautela em relação à ciência do populacho.
Monsenhor Muniz Tavares parece neste trecho, talvez por defeito de redação, confundir os Suassunas com os cortezãos da vitória: tanto assim que M. L. Machado entendeu dever fazer a ressalva numa nota de 2ª edição. O proceder dos irmãos Cavalcanti na revolução não foi contudo tão coerente e intransigente quanto o de outros – o padre João Ribeiro ou o padre Miguelinho por exemplo. Sua ação desenvolveu-se mesmo entre circunstâncias que lhe emprestam por vezes certo ar equívoco, comprovado pelo fato capital de nenhum deles ter sido executado quando foram eles os generais da rebelião.
(...)
L.
Tollenare admirava o espírito do padre Miguelinho e em suas notas deixou consignado um elogio ao seu juízo crítico, o que equivale dizer à sua imparcialidade. A política de união entre portugueses e brasileiros encontrou no padre um defensor seguro, e tal política era tanto da conveniência do novo regime, o qual o comércio pelo menos, todo ele português, repudiava senão ostensivamente, no seu íntimo, que se acha ela consignada nas instruções dadas a Felipe Nery Ferreira, quando nomeado juiz ordinário do crime da vila e termo do Recife.
Consoante possíveis palavras do líder revoltoso Domingos Martins, reitero, romanceadas pelo historiador Paulo Santos de Oliveira, as soluções para os impasses teriam saído da “santa e serena cabeça do padre Miguelinho”, assim:
´Roma não se fez num dia’, ele filosofou. E propôs uma solução intermediária: em vez de desde já convocarmos uma autêntica constituinte democrática e começarmos uma guerra civil, que fizéssemos as coisas passo a passo. Deveríamos preparar uma legislação provisória, cuidando de promover avanços não muito radicais, e enviá-la para debate nas câmaras municipais. Assim abriríamos caminho para uma eleição de deputados realmente popular, daqui a algum tempo.’Duas outras proclamações escritas pelo Pe. Miguelinho, a primeira, em resposta à ameaça limiar contra-revolucionária, que coube ao Conde dos Arcos, Marcos de Noronha e Brito, Governador e Capitão-General da Bahia, e a segunda, aos pernambucanos do sul, demonstrando insatisfação em face da escolha monárquica adotada pelos senhores de engenho:
Se Pernambuco virar uma Nova Roma, que o agradeça ao padre Miguelinho: a proposta foi aceita por unanimidade e essa constituição temporária ganhou o apelido de ‘Lei Orgânica’.
(...)
Aí, a polêmica começou.
Depois de muito bate-boca, o padre Miguelinho, novamente, encontrou uma solução. Ele sugeriu fazermos como quer o nosso prepotente jurista; mas, ao invés de imprimirmos e distribuirmos o texto à larga, que mandássemos cópias apenas para as câmaras do Recife, Olinda e Igarassu – as mais fiéis à República – e observássemos o que aconteceria por lá ...
Santo e Sábio homem!...
Denodados patriotas baianos. Já sabeis o resultado do faustíssimo dia seis de março?... Já sabeis e ainda hesitais?... Será possível, caros irmãos, que as insulsas ameaças e as vãs bravatas do fútil general que vos governa vos façam recuar do caminho da honra?... Não o cremos. Vosso caráter e vossas virtudes são notórias!... Baianos, os vossos interesses estão estreitamente ligados com os de Pernambuco e os do Brasil inteiro. O grande interesse da Independência e da Liberdade é quem vos convida e, para obtê-lo, nenhum sacrifício deve custar. Unamo-nos em um só corpo e os déspotas tremerão. Separados, a mão de ferro, que até hoje tem pesado sobre nós, mais desapiedada se mostrará. Unidos teremos força, e a força é o único ídolo que os tiranos respeitam. Viva a União,viva a Independência e viva a Liberdade do Brasil”.Muito bem. Verifiquemos que o festejado herói potiguar, em determinada fase de sua existência vituperava o movimento revoltoso ocorrido na “França libertina e escandalosa”, dando graças à sabedoria de Portugal por erguer firmes muralhas contra planos sediciosos. Porém, depois participaria influentemente de uma revolta inspirada naqueles ideais chamados francesistas, exato em oposição ao País cuja sapiência ordeira antes exaltara.
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(...)
a baixa saudade que conservam dos seus tortuosos e mal fundados títulos e brasões, das humildes zumbaias que recebia a sua prostituída e mal fadada senhoria, o horror de se conhecerem iguais em direitos aos outros homens, entre os quais se julgam como uma raça distinta, nascida para mandar, e finalmente o desejo que ainda lhes arde nos orgulhosos corações de vos pisarem e cobrirem de desprezo (...) Essa rançosa e abastardada fidalguia do sul é o vosso único inimigo: o povo que os acompanha ou é seduzido ou arrastado à força; e que podem recear homens livres dessa chusma de escravos, que seguem quatro ou cinco pseudo-fidalgos sem letras, sem talentos, sem virtude, que não sabem senão vegetar e arrotar embófias e fanfarrices e que não estudaram outra ciência senão a história genealógica de suas arruinadas casas?
Advirtamos que a justiça histórica só se perfaz em amplitude. Portanto, é incompatível com análises preliminares superficiais, à margem do contexto; alheio às circunstâncias. “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, dizia o filósofo espanhol José Ortega Y Gasset (1883 – 1955). Logo, mesmo a visão preliminar há de ser cuidadosa, criteriosa e larga.
Lembremo-nos de haver Miguelinho discursado a “Oração Acadêmica” no ano em que chegara de Portugal (1800), vindo de seus estudos teóricos decerto influenciados pelo iluminismo. Entretanto, encontrava-se, à evidência, assombrado a respeito de como a Revolução Francesa, que se baseara nas luzes da razão, vinha resultando em verdadeiro genocídio que perdurava havia sete anos entre patrícios. Primeiro, com o guilhotinamento de monarquistas (do ancien régime); depois, de girondinos por jacobinos; de jacobinos por jacobinos (o Terror de Robespierre); e de jacobinos por girondinos, culminando com o absolutismo napoleônico germinado no 18 brumário, que passaria a avançar dominialmente sobre muitas nações européias. A esse mal resultado imediatista, mesmo considerado menor que o provocado pela total ignorância, ele denominou de abuso das ciências; senão se recordem as suas palavras:
Pode-se abusar das sciencias; hé verdade, mas ese mesmo abuso hé menos pernicioso e criminal do que os efeitos tristissimos de huaignorancia cega. A sabedoria ainda no ponto de seomayor abuso só xega até dar ao vicio as cores aparentes da virtude, desmascarar os mais feyos atentados contra o Rey e contra a Patria, com o véospecioso (e enganador) de Liberdade e Patriotismo; mas esa mesma necessidade em que as Luzes da Razam tem posto os criminosos e os malvados de ocultarem o seo negro caratcter debaixo de imagens impostoras, serve de mayor elogio as mesmas sciencias, e a verdade.Discurso, portanto, apropriado ao pensar de quem, após muita dedicação aos estudos teóricos, acreditava (e aqui eu o parafraseio) que só as ciências e as belas artes ensinam aos homens o que eles devem ser, fazendo-os declinar de suas paixões, unindo-os em paz, levando a luz a todas as ordens, prescrevendo a cada um os seus direitos e deveres sociais, estreitando os laços desses mesmos direitos e consolidando os fundamentos da sociedade.
Tendo em vista esse e outros fragmentos, observamos tratar-se de posição ideológica menos alinhada a Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), comparando-se a Thomas Hobbes (1588 – 1679). Demais, àqueles anos era ainda muito jovem a proposição de um estado regido não pelo arbítrio do governante, mas por leis de obediência geral, e movediça a melhor forma de alcançá-lo. Tanto que até hoje se discute sobre as conseqüências imediatas das pregações iluministas francesas de Rousseau, Montesquieu (1689 – 1755), Helvétius (1715 – 1771), Diderot (1713 – 1784) e D’Alembert (1717 – 1783; estes dois últimos editores da famosa “Enciclopédia”), contrapostas às das britânicas e norte-americanas de Adam Smith (1723 – 1790), Edmund Burke (1729 – 1797), John Adams (1735 – 1826), Thomas Jefferson (1743 – 1826) e James Madison (1751 – 1836).
Consideremos que os instantes históricos ocorrem por um conjunto entrelaçado de fatores a torná-los complexos e dificultar o seu entendimento; e que os frutos de uma idéia nunca a fazem perfeitamente jus ou, quando a correspondem, tal só acontece de forma gradativa, remota e, mesmo assim, aproximada.
Depois, falando a modo simples e pragmático, é razoável deduzir que, ao chegar ao Brasil, Miguelinho saiu das bibliotecas para as ruas; do abstrato ao concreto; da teoria à prática. Passou de uma a outra realidade. A compreender hoje esse tipo de passagem, considero-a à luz das observações de Marilena Chauí , baseadas na práxis revolucionária dos processos dialéticos sociais defendidos por Karl Marx (1818 – 1883; por óbvio não teorizadas àquele tempo) segundo as quais as:
(...) idéias parecem resultar do puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da especulação metafísica, sem qualquer laço de dependência com as condições sociais e históricas,”mas são, “na verdade, expressões dessas condições reais, porém de modo invertido e dissimulado. (...) as idéias serão tomadas como anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens. (...) cada nova classe em ascensão que começa a se desenvolver dentro de um modo de produção que será destruído quando essa nova classe dominar, cada classe emergente, dizíamos, precisa formular seus interesses de modo sistemático e, para ganhar o apoio do restante da sociedade contra a classe dominante existente, precisa fazer com que tais interesses apareçam como interesses de toda a sociedade. (...)Logo, ouso afirmar que Miguelinho passou a ter maior convivência com a realidade; e mais, uma realidade toda distinta e adversa aos compatriotas, pois saíra da metrópole (colonizadora) e regressara a sua pátria (predatoriamente colonizada e ainda colônia).
Então se revolvam as circunstâncias, fazendo antes uma resumidíssima panorâmica daquele ido.
Sem esquecer a submissão forçada do Rei “João Sem Terra” à Magna Carta (primeira Constituição da história, em 1215), nem a Revolução Gloriosa de 1688, mas adotando como marco vestibular o século XVIII, denominado “Século das Luzes”, recordemos que o chamado mundo ocidental experimentava profundas transformações sociopolíticas causadas pelas idéias iluministas, as quais, sob o lema de liberdade, igualdade e fraternidade, defendiam o fim dos regimes monárquicos para a ascensão dos republicanos. O movimento emblemático desse período foi a Revolução Francesa, deflagrada em 1789 (imortalizada, entre demasiadas obras, pelo belíssimo quadro “Liberdade Guiando o Povo”, pintado por Eugène Delacroix; 1798 – 1863), coeva de outra simbólica sedição, postos os marcantes reflexos ideológicos, que foi a luta pela independência dos Estados Unidos da América (em 1776), cujo móvel, carregado de proposições contrárias ao colonialismo, propagou-se a grande velocidade.
E o Brasil-colônia começava a se contorcer em face do paradoxo de encontrar-se sob o modelo agrário-exportador e escravista do qual mínima parcela da população era beneficiária (fenômeno atribuído à concepção Divina), contudo, iniciando-se no saber de uma ideologia trazida pela casta intelectual brasileira vinda dos estudos na Europa. Formada por descendentes de famílias abastadas, a maioria oriunda da Universidade de Coimbra (ou que, mesmo não havendo saído do País, simpatizava com o ideário), procurava explicar a natureza, a sociedade e a economia daquela era através da razão, questionando o direito absoluto dos reis e os privilégios da nobreza. Conheciam e discutiam, portanto, as teses e antíteses de Jean Bodin (1530 – 1596), Michel de Montaigne (1533- 1592), Francis Bacon (1561 – 1626), John Locke (1632 – 1704), Montesquieu (1689 – 1755), Voltaire (1694 – 1778), Diderot (1713 – 1784), Rousseau (1712 – 1778), Condorcet (1743 – 1794), Helvétius (1715 – 1771), D’Alembert (1717 – 1783), Adam Smith (1723 – 1790), Edmund Burke (1729 – 1797), George Washington (1732 – 1799), Benjamin Franklin (1706 – 1790), Thomas Jefferson (1743 – 1826), James Madison (1751 – 1836) e John Adams (1735 – 1826), apenas para citar alguns.
Aqui encontrou campo sobremodo fértil causado, de início, por querelas entre brasileiros e portugueses, as quais, aos poucos, juntaram-se à insatisfação do trato extorsivo dado por Portugal à sua colônia, começando a provocar desde lutas pouco sistematizadas a movimentos planejados e, logo, de maiores repercussões como, dentre uns e outros, a “Guerra dos Emboabas”, a “Guerra dos Mascates”, a “Revolta de Felipe dos Santos”, a “Inconfidência Mineira”, e a “Conjuração Baiana” (ou “Conspiração dos Alfaiates”).
Do começo e gradativa fervura desses conflitos oferece notícia Capistrano de Abreu (1853 – 1927), fazendo primeiro menção a dos “Emboabas”:
(...) Os triunfos colhidos em guerras contra os estrangeiros, as proezas dos bandeirantes dentro e fora do país, a abundância de gados animando a imensidade dos sertões, as copiosas somas remetidas para o governo da metrópole, as numerosas fortunas, o acréscimo da população, influíram consideravelmente sobre a psicologia dos colonos. Os descobertos auríferos vieram completar a obra. Não queriam, não podiam, mais se reputar inferiores aos nascidos no além-mar, os humildes e envergonhados mazombos do começo do século XVII. Por seus serviços, por suas riquezas, pelas magnificências da terra natal, contavam-se entre os maiores beneméritos da Coroa portuguesa.Por coincidência, foi nesse paulatino clima de conflagração que, em 1800, inaugurava-se o Seminário de Olinda, com a reputada formação intelectual dos seus lentes.
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Destes atritos e malquerenças a primeira manifestação pública explodiu nas terras do ouro com a chamada guerra dos Emboabas, uma das designações dos reinóis na língua geral. (...).
Acresçamos os obstáculos impingidos ao direito de reunião, além da óbvia inexistência de partidos políticos, levando à conseqüência do florescimento das organizações sigilosas, a mor parte delas com a finalidade de discutir os problemas da sociedade e conspirar contra o Governo, muitas com inspiração maçônica.
Aliás, essa questão persevera em impelir a açulada desinteligência sobre o início dos trabalhos maçônicos brasileiros, a ponto de o nosso irmão Xico Trolha , ressalvando encontrar-se desamparado de “documentos primários”, redarguir o confrade Luiz Carlos Leme Franco, desafiando-o a comprovar que “(...) a Maçonaria Regular, ou mesmo, núcleo Maçônico, se tenha instalado no Brasil, antes do Areópago de Itambé. (...)” e também contrariar trecho do trabalho do irmão e historiador Francisco Guilherme Costa. Para este, inobstante o Areópago haver sido criado em 1796, mercê de sua irregularidade, o primado provavelmente coubesse à Loja Cavaleiros da Luz, de Salvador, fundada a bordo da Fragata “La Preneuse” no seguinte ano de 1797. Mas no entender de Trolha, a fragata sequer chegou ao porto baiano, pois antes fora rebocada à França, a fim de consertar alguma avaria que sofrera. Inclusive cita este autor um resumo cronológico feito por José Castellani, demonstrativo da história dessa natividade até a fundação do Grande Oriente em 1822 .
Pois bem. Passando à margem de tal polêmica, o certo é que se iniciava a amálgama de intelectuais formados pelos religiosos do Seminário de Olinda, militares, comerciantes e agricultores brasileiros insatisfeitos com o tratamento assaz privilegiado dado aos portugueses e, de uma forma geral, com a exploração extorsiva da colônia. Reuniam-se nas sociedades secretas. A ilustrar essa comunhão que se principiava, diga-se que o próprio Azeredo Coutinho era iniciado Maçom, bem assim o Padre Carmelita Arruda Câmara, fundador do Areópago de Itambé. Animavam-se, destarte, os propósitos libertários, separatistas, anti-colonialistas, ao ponto de em 1801 dar-se a denominada “Conspiração dos Suassunas”, um germe da revolta que viria a acontecer 16 (dezesseis) anos mais tarde. O fracasso da Conspiração causou o fechamento do Areópago, cujos objetivos, no entanto, viriam a ressurgir sob os auspícios das Academias Suassuna e Paraíso.
Segundo Muniz Tavares, “Entre os amantes da república, figuravam alguns mações, ou pedreiros livres. (...) Nenhuma instituição apresentando melhores vantagens ao trabalho da regeneração nacional, aqueles mações principiaram em 1809 a organizar cada um na cidade de seu domicílio várias lojas...”.
Tão grandes eram as contrariedades e exaltados os ânimos, que nas reuniões e banquetes não se tomava vinho e nem se comia pão, e sim cachaça com farinha de mandioca, produtos eminentemente nordestinos, a sinalizar protesto contra os costumes lusitanos e homenagem às propostas libertárias •. Há notícias de que essas amostras insurgentes transmitiram-se às celebrações religiosas.
Em 1808, a vinda da família real e a transferência do régio poder político foram marcantes ao incremento da dinâmica e da forma de desenvolvimento desses novos ideais em solo brasileiro. Afirma Roberto Simonsen:
(...) Nesse estado de coisas, a mudança da família real para o Brasil, em 1808, transplantando para o Rio de Janeiro a sede do império português, representou inestimável serviço prestado à colônia, que passou a gozar dos benefícios decorrentes da coincidência das diretivas políticas do império com o do núcleo econômico, já localizado na colônia. Deu-se o fenômeno que alguns historiadores denominam, com justeza, da inversão política brasileira. E pelo fato de o velho reino ter sido invadido e ocupado pelos franceses, transformando-se por anos sucessivos em teatro de guerra, até a expulsão final dos invasores, foi a Coroa portuguesa forçada, por uma série de atos, a promover a sobrevivência dos elos econômicos que prendiam o Brasil aos mercados mundiais, sem passar pela metrópole. (...).Óbvio sabermos todos que esse “inestimável serviço prestado à colônia”, de acordo com a qualificação do Professor Simonsen, não foi voluntário. Dom João VI (1767 – 1826), talvez aquinhoado por personalidade a um só tempo e em igual medida sábia e cautelosa, preferiu fugir do confronto com Napoleão Bonaparte (1769 – 1821), a me fazer lembrar, de certo modo benevolentemente, Sun Tzu (544 a. C.), ao dizer que “Lutar e vencer em todas as batalhas não é a glória suprema; a glória suprema consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar. (...).” Semelhante agiu a família real da Rússia em 1812, só que de maneira premeditada.
De toda sorte, D. João terminou mesmo conseguindo salvar o seu Reino, dada a vitória em detrimento da França conquistada pela Inglaterra, que o ajudara na empreitada fugitiva à custa, entretanto, de enormes e duradouros privilégios comerciais (vide o “Treaty of Cooperation and Friendship” ou “Tratado de Cooperação e Amizade”), além de empréstimos financeiros escorchantes, os quais durante muito tempo deitaram reflexos ruinosos na economia brasileira.
A providencial medida gerou a necessidade de criar no Brasil, cujas riquezas naturais, ressalte-se, já sustentavam a economia da Coroa, a imprescindível infra-estrutura e logística tanto ao exercício do poder central quanto para fazer face às grandezas luxuosas da Corte e da vassalagem, além de assim mostrar-se ao mundo. Daí a abertura dos portos às nações amigas; a fundação do Banco do Brasil; a criação da Imprensa Régia, além da autorização para o funcionamento de tipografias e publicação de jornais; a criação da Academia Real Militar; a criação de escolas qual a de Medicina; a revogação da lei que proibia manufaturas, dando ensejo à instalação de uma fábrica de pólvora e indústrias de ferro; ao incremento quanto à abertura de estradas; a isenção de impostos para novas culturas de especiarias e lavouras às margens dessas ligações viárias; a vinda da Missão Artística Francesa, bem como a fundação da Academia de Belas-Artes; a isenção de direitos para as matérias-primas de que necessitasse a indústria nacional; a introdução de colonos estrangeiros, estendendo-lhes o direito de propriedade e outros; o fomento à mineração do ouro e do ferro; a concessão aos lavradores “do privilégio de não serem executados na propriedade, de seus engenhos, fábricas e lavouras e somente em uma parte de seus rendimentos” (Alvará de 21 de janeiro de 1809); a criação da Biblioteca Real, assim do Jardim Botânico e do Museu Real (em seguida denominado Museu Nacional).
Em razão de todas essas providências, (notabilizo, imprescindíveis à sobrevivência da Coroa portuguesa), para demonstrar o estágio superior do espírito brasileiro comparativamente àquele contemporâneo do século passado, descrito por Capistrano de Abreu, transcrevo as seguintes e respectivas observações do professor Roberto Simonsen e do jornalista e escritor Laurentino Gomes:
(...) A propaganda que se fez na Europa decorrente da fundação de um novo reino na América e as medidas liberais adotadas por D. João VI abriram o país à curiosidade estrangeira e, então, assistiu-se à afluência de notáveis viajantes e homens de ciência, a que iríamos dever a divulgação de ensinamentos sobre os nossos recursos naturais, concorrendo para que a terra ficasse melhor conhecida dos próprios brasileiros.De modo assertivo, eu insisto que essa pavimentação já se encontrava acontecendo, à força das ante-ditas agitações sociais. A vinda da Realeza deu-lhe celeridade e substância, na medida em que os brasileiros não aceitariam (e de fato não aceitaram) perder as conquistas econômicas e culturais dela decorrentes, assim retroceder à condição de Colônia. Por diverso lado, os benefícios alcançados em virtude da promoção do Brasil, no 1815, ao título de Reino Unido com Portugal e Algarves, continuava a deixar marginalizada, como soía nos regimes absolutistas daquele tempo, colossal parte da população mesma do Rio de Janeiro e capitanias próximas, além de todo o restante do país, conforme denuncia Muniz Tavares, enfatizando a situação pernambucana:
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O grande acontecimento político, que representou a mudança da Família Real para o Brasil, ia proporcionar aos brasileiros uma fase de maior autonomia política, já em harmonia com o poderio econômico. Mas não seria, dentro de pouco tempo, suficiente para satisfazer as suas aspirações. (...).
“Nenhum outro período da história brasileira testemunhou mudanças tão profundas, decisivas e aceleradas quanto os 13 anos de permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro. No espaço de menos de uma década e meia, o Brasil deixou de ser uma colônia fechada e atrasada e começou a pavimentar o seu caminho rumo à independência.”
“(...) A agricultura que devia ser a mais favorecida como veículo principal da riqueza brasileira, era pelo contrário a mais sobrecarregada. Ao gravíssimo tributo do dízimo, do qual o governo português tinha-se assenhoreado desde o princípio da descoberta do Brasil com exclusão absoluta dos serventuários da Igreja, reuniram-se outros tributos igualmente intoleráveis, porque recaíram sobre as produções, e não atendiam ao custoso dispêndio da mão de obra. A décima foi imposta sem proporção aos ricos, e pobres proprietários de prédios urbanos, entretanto que o lamaçal nas ruas perdurava sempre com detrimento da saúde pública, e os habitantes do Recife bebiam água imunda transportada em limosas canoas. (...).Não passaria despercebido ao Padre Miguelinho, homem de agudíssima inteligência, que para se alcançar a soberania das ciências e das artes e, portanto, da razão, antes se fazia necessário alterar a estrutura social e as condições cotidianas de vida, que eram, antanho, acabamos de ver, insuportáveis aos brasileiros, embora o Reino aqui estivesse instalado. Outrossim, começava-se a vislumbrar que, passadas as convulsões européias provocadas pelas guerras napoleônicas, o poder político volveria a Portugal e, conseqüentemente, regredir-se-ia à situação intolerável dos primórdios do colonialismo.
É nessas circunstâncias que ele – ou aos poucos, durante os dezessete anos após o seu retorno ao Brasil em 1800 – debatia em reuniões secretas as formas pelas quais se alcançaria o poder, ou atendendo ao chamado dos patrícios, quando da eclosão da revolta em 1817, dela passou significativa e intelectualmente a fazer parte.
Reafirmo: à míngua de registros desse ínterim, não me foi possível precisar qual das duas hipóteses é a verdadeira, sendo mais provável a de sua gradual participação nos planejamentos mudancistas institucionais, seja porque, consoante se infere do seu discurso, tratava-se de homem deveras politizado e assertivo, seja porque, como ficou dito, iniciara na Maçonaria. E, por reflexo, consideremos essas anotações de Oliveira Lima na obra de Muniz Tavares:
(...) A revolução de 1817 pode quase dizer-se que foi uma revolução de padres: pelo menos constituíram o seu melhor elemento, o que mais provas deu de sinceridade, de isenção e de devotamento, aquele onde se recrutaram, com poucas exceções, seus dirigentes. (...)No que diz respeito à concepção daqueles que lutavam por mudanças político-institucionais no Brasil, observo haver-se formado duas correntes dominantes: uma, mais moderada, que defendia a independência, contudo, mantendo-se o regime monárquico imperial. Esta, se sabe, foi a prevalecente e se manteve durante 65 (sessenta e cinco) anos sob a égide da Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I (1798 – 1834).
(...)
O Catecismo liberal imbuíra de tal modo o clero nacional que o governador do bispado, deão Manoel Vieira de Lemos Sampaio, chegaria a publicar uma pastoral em que declararia não ser a revolução contrária ao Evangelho, porquanto a posse e direito da Casa de Bragança eram fundados num contrato bilateral, estando os povos desobrigados de lealdade jurada por ter sido a dinastia quem faltou primeiro às suas obrigações. (...).
A segunda propugnava pela total e abrupta independência de Portugal, com a imediata extinção da Monarquia e instalação da República (qual acontecera nos Estados Unidos da América e iniciara na América espanhola). Sobre essa dualidade em âmbito regional, vejam-se as palavras de Tavares de Lira:
(...)É sabido que as sociedades secretas de Pernambuco foram, a começar de 1800, centros de intensa propaganda política.Na tentativa de emprestar nitidez a essa dicotomia ideológica, traço um paralelo com os coetâneos fatos que se desenvolviam em São Sebastião do Rio de Janeiro, pois era lá onde estava sediado o Poder central. E o faço atentando ao posicionamento extremado, defendido por Joaquim Gonçalves Ledo (1781 – 1847), em contraposição ao moderado José Bonifácio de Andrada e Silva (1763 – 1838); aliás, embates propositivos nascidos e renhidamente travados dentro da Maçonaria, posto que ambos eram maçons. Acerca dessa confrontação, divisemos o descrito por Laurentino Gomes:
Nelas se doutrinavam os mais adiantados princípios liberais ou, como se dizia, a causa da liberdade. Alguns dos associados, coerentes com as suas idéias, chegavam logicamente às últimas conseqüências destas: pleiteavam o estabelecimento do regime republicano, com as mais amplas franquias democráticas. Outros, talvez a maioria, não iam tão longe: queriam a independência e, com ela, uma constituição que assegurasse garantias de ordem política, delimitasse as atribuições dos poderes que fossem criados, reconhecesse os direitos dos cidadãos e refreasse as violências das autoridades. (...).
Ao se operar a revolução no Recife, vencera, porém, a primeira corrente. (...).
A maçonaria teve papel fundamental na Independência, mas é um erro apontá-la como um grupo homogêneo. Nem de longe os maçons foram unânimes nas suas opiniões. Ao contrário, foi ali que se travaram algumas das disputas mais acirradas do período e que envolveram ninguém menos do que o jovem príncipe regente e futuro imperador Pedro I.Malgrado figurar a capitania pernambucana em meio às de intenso radicalismo (tanto que, afirma Laurentino Gomes em sua Obra, pág. 226, foi a única com perdas territoriais impostas pela Monarquia por motivos políticos, em punição decorrente da renitência rebelde), eu não colocaria o Padre Miguelinho enfileirado com os defensores da mudança drástica. Em face dos excertos até agora mencionados, veste-lhe confortável a posição do segundo grupo, ao qual se referiu Tavares de Lira, assemelhando-se com o julgamento feito por Tollenare, traduzido por Costa Porto, ao comentar sobre os autores, dirigentes e “teóricos” da preposteração:
Em 1822, a maçonaria brasileira estava divida em duas grandes facções. Ambas eram favoráveis à independência, mas uma delas, liderada por Joaquim Gonçalves Ledo, defendia ideias republicanas. A outra, de José Bonifácio de Andrada e Silva, acreditava que a solução era manter D. Pedro como imperador em regime de monarquia constitucional. Esses dois grupos disputaram o poder de forma passional, envolvendo prisões, perseguições, exílios e expurgos, como já se viu no capítulo ‘O trono e a constituinte’. Por curiosidade e interesse em vigiar e controlar as diversas correntes políticas da época, D. Pedro participou ativamente das duas facções. Frequentava as lojas do grupo de Gonçalves Ledo reunidas no Grande Oriente do Brasil, mas também esteve na fundação do Apostolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, dissidência liderada por José Bonifácio. Em lugar de ‘lojas’, o Apostolado tinha ‘palestras’, batizadas significativamente de ‘Independência ou Morte’, ‘União e Tranquilidade’ e ‘Firmeza e Lealdade’. Eleito ‘arconte-rei’ na primeira sessão, D. Pedro jurou ‘promover com todas as forças e à custa da própria vida e fazenda a integridade, independência e felicidade do Brasil, como reino constitucional, opondo-se tanto ao despotismo que o altera com à anarquia que dissolve’. Era o programa de governo de José Bonifácio.
Nas lojas maçônicas foram estudadas, discutidas e aprovadas várias decisões importantes, como o manifesto que resultou no Dia do Fico (9 de janeiro de 1822), a convocação da constituinte, os detalhes da aclamação de D. Pedro como ‘defensor perpétuo do Brasil’ e, finalmente, como imperador, no dia 12 de outubro. ‘Imensa foi a contribuição da maçonaria para ao movimento da Independência’, afirmou o historiador Octávio Tarquínio de Sousa. ‘Essa atividade encoberta, esses juramentos em segredo deixam fora de dúvida como a independência já estava decida alguns meses antes de setembro de 1822 e como o príncipe se dera sem reservas à causa brasileira’.
(...) entre os quais apontaria diversas gamas diferenciadoras, assim resumidas: os ‘filósofos seduzidos pela teoria da soberania popular’, – e cuja melhor encarnação seria o Padre João Ribeiro Pessoa, ‘devorado do amor da ciência e do amor da liberdade’, falho, todavia, em ‘espírito político’ (...); em segundo lugar, ‘os intrigantes, impelidos por preocupações egoístas’ – cuja simbolização seria Domingos José Martins, ou os ‘temperamentos irresolutos e as inteligências formalistas’, como José Luís de Mendonça, – ao lado dos que, fora da direção, figurando a modos de consultores repontariam como os ‘melhores homens de ação’ – o vigário Tenório, de ‘prodigiosa elaboração mental’, Miguelinho, ‘de ponderado juízo crítico’, Antônio Carlos, ‘de superiores predicados intelectuais e administrativos, tão instruído quando determinado.’(...).Simplificando: estaria politicamente mais para um reformista do que para um subversivo; mais para um guerreiro de posição do que para um guerreiro de movimento (lembrando aqui o filósofo Antonio Gramsci; 1891 – 1937); enfim, estaria mais próximo à visão de Bonifácio do que à de Gonçalves Ledo, porquanto, disse Muniz Tavares, aborria os movimentos precipitados, (...) queria uma república, mas quando fossem dispostos os elementos, quando os meios de a sustentar se proporcionassem à dificuldade da empresa.
Entretanto, mesmo partidário do grupo que, em Recife, fora vencido, não abandonaria os compatriotas que radicalmente defendiam a mudança abrupta do regime.
Logo, conforme constatamos, dispôs à Revolução todos os seus atributos: de pessoa ponderada, articulada, judiciosa e providente. Aquele a quem os companheiros primeiro recorriam para consertar as desinteligências comuns a todos os agrupamentos, máxime nesse tipo de empreitada, porque encontrava e apresentava sempre a perfeita solução; o remédio adequado. Atinava ser harmônico e tempestivo à necessidade momentânea; intransigente (na inteireza e retidão de juízo crítico, equivalente à imparcialidade) e tolerante; rígido de conceito, mas temperado na ação; cirúrgica e excepcionalmente belicista, mas pacifista e contemporizador por natureza e escopo; de espírito evangélico e alheio a sentimentos de vingança, nas palavras de Oliveira Lima; de doce caráter e consumada prudência, segundo Muniz Tavares; de cabeça santa e serena, sob a ótica de Paulo Santos de Oliveira; defensor da igualdade de direitos entre os homens, como escreveu em uma de suas proclamações revolucionárias, assim registrado por Evaldo Cabral de Mello. Verdadeiro, sagaz, além de exímio orador, por tal forma exprimia todos esses seus atributos.
Falando à maneira utópica, fossem todos iguais a Miguelinho, inexistiria a fatalidade da qual posteriormente observava Joaquim Nabuco (1849 – 1910), para quem, sem os exaltados não é possível fazer revoluções e com eles é impossível governar.
Continua