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02 setembro 2012

O Padre Miguelinho - III


Ir:. George Macedo Heronildes

III - A REVOLUÇÃO.

Contudo, os feitos pelos quais viria a ficar sobremaneira conhecido e reconhecido, para além de suas qualidades intelectuais e de judicioso condutor revolucionário, ocorreram ao ser aniquilada pela Coroa a conflagração. Aí, quando os sentimentos comuns aos vencidos, de acordo com a textura da personalidade, são o de recuo, resignação, medo, terror ou covardia, sublimou-se o Padre com suas atitudes caracterizadas pela hombridade, solidariedade humana e coragem heróica, moldadas, e não se esperaria ser diferente, pela conhecida serenidade e inabalável fé na justiça do Grande Arquiteto do Universo.
Àquele estágio, relembremos os antecedentes, o mundo ocidental começava a se revolver pela ruptura do colonialismo, que, partindo da independência norte-americana em face dos ingleses, chegava à América Espanhola igualmente por vias maçônicas, a depreender-se das palavras de Xico Trolha:
No final do século XVIII, Francisco Miranda, patriota venezuelano, exilado em Londres, fundava ali a Loja ‘Cavaleiros da Razão’, que tinha como fachada o nome de ‘Grande Reunião Americana’. E foi do seio dessa Loja (irregular), que nasceram os Grandes Líderes do Continente e das Lojas Lautaroe os movimentos de Independência (inclusive o Areópago de Itambé, no Brasil). Miranda foi o maior propagador dos ideais de Liberdade e de Libertação. E na esteira dele vieram o Cura de Dolores, San Martin, O’Higgins, Rocafuerte, Montufar, Narino, Alvear, Caro e Bolívar. Todos Maçons ligados às Lojas ‘Lautaro’, na América Espanhola, e no Brasil, os Padres Arruda Câmara, Roma, Miguelinho, Francisco Sampaio, Muniz Tavares, Teixeira Pita, Januário da Cunha Barbosa, Frei Caneca e tantos outros.
Por semelhança de formação, circunstâncias e gestos pessoais pertinentes ao Padre Miguelinho (inclusive identidade no nome), desses movimentos eu remeto ao que visava à independência Mexicana, conquistada a 1821, mas admirada na pessoa do seu primeiro mártir, o Padre Miguel Hidalgo y Costilla (o Cura de Dolores; 1753 – 1811), porquanto, frustradosos seus desígnios insurreicionais em 1811, recusou-se a fugir e, quando preso por ordem do Bispo de Michoácan, D. Manoel Abad y Queypo, ao ser interrogado se tinha cúmplices, respondeu negativamente, inobstante que sob ferozes torturas e em sacrifício da própria vida, segundo noticia Xico Trolha:
Submetido à tortura, suportou as dores com a resignação de um justo. Às perguntas sobre se tinha cúmplices, respondeu que não. Se tinha pactos com o demônio, limitou-se a dizer que conhecia o Bispo mui vagamente.
Além dessas novas republicanas e de formação de um estado moderno, sentiam-se os reflexos da chamada Revolução Industrial protagonizada pela Inglaterra, de modo a poder-se afirmar haver esse fenômeno também contribuído ao motim pernambucano. E nisto inexiste qualquer demérito, pois a economia imprescindivelmente compõe o arcabouço social.  O preconceito vem de quando ela foi chamada de “ciência sinistra” por Thomas Carlyle (1795 – 1881) em resposta às proposições de Thomas Malthus (1766 – 1834). Mas, parafraseando Francesco Carnelutti (1879 – 1965)  , trata-se, singelamente, do meio pelo qual os homens buscam satisfazer as suas necessidades. Certo é que, na vida comunitária, a política e a economia nunca se separam .
Com efeito, aproveitando-se da necessidade do abastecimento fabril, mormente o inglês, começara a emergir uma nova classe de ricos produtores e comerciantes vinculados à cultura do algodão. “(...) É de notar (escreve Simonsen ) que foi somente no século XVIII que a Europa começou a empregá-lo em maior escala, para o fabrico de panos. Até então, eram as lãs as matérias-primas com que ingleses, flamengos, bretões e venezianos porfiavam na concorrência do fabrico de tecidos. Divulgado o uso do algodão para o fabrico de panos, tomou sua cultura grande incremento no Norte e no Nordeste brasileiro. Em Pernambuco, no final do século XVIII, alcançou em certos anos tanta importância como o açúcar. (...).”
De início, essa atividade agrícola recebeu estímulos da metrópole: tanto que, por Alvará de 13 de agosto de 1759, foram criadas as bases para a constituição da Companhia de Pernambuco e Paraíba, vindo o Tesouro a ser autorizado, por Alvará de 23 de julho de 1761, a fornecer vultosos empréstimos, logrando tais atos administrativos o fortalecimento da cultura do arroz e do algodão, que iriam constituir, mais tarde, a base do enriquecimento regional.
Dava-se, com ser assim, a ameaça de mudança na estrutura agrícola, gerando a crise hegemônica da atividade vinculada ao cultivo da cana-de-açúcar, de modo que os senhores de engenho, formadores da classe então dirigente, denominada pelo historiador Evaldo Cabral de Melo “açucarocracia”, passaram a pressionar o Reino com o fim de manter-lhes a posição dominante. E de fato conseguiram que, em 1779, a Rainha, D. Maria I (1734 – 1816), revogasse os Alvarás, o que vinha ao encontro dos interesses de Portugal, país monopolizador do comércio da atividade açucareira.
Some-se, como foi aqui mencionado, o insuportável aumento de impostos para fazer face às despesas cada vez maiores da Coroa – inclusive à iluminação pública do Rio de Janeiro, enquanto em Recife tal benefício era quase inexistente – que levou as rendas reais arrecadadas pelo erário na Capitania de Pernambuco a quase dobrar entre os anos de 1812 e 1816.
A par e em razão dessas injustiças econômicas, aumentavam com rapidez as discórdias, os ciúmes, o sentimento de inferioridade dos brasileiros perante os portugueses, assim descritos por Muniz Tavares e Oliveira Lima:
O que se achava na raiz do descontentamento dos patriotas era a sizania levantada entre os nascidos em Portugal, e nascidos no Brasil, acusados, os primeiros pelos últimos, de monopolizar os melhores empregos civis e militares, arrecadar os maiores proventos e açambarcar quanto havia de bom e rendoso na terra. Por outras palavras, o que se pode chamar a questão nativista chegara à afirmação da independência e, nas suas vestes democráticas, tão em moda na época, surgia mais veemente e mais audaz do que na capitania de Minas do final do século XVIII. 
A. Tenório d’Albuquerque, baseado no historiador Mário da Veiga Cabral, endossa essas palavras dando a seguinte conotação:
As autoridades portuguesas, em excesso condescendentes com os seus compatriotas, mancomunadas com eles, mantinham os brasileiros num regime opressivo em que a injustiça era a norma, provocaram reação da Maçonaria em defesa dos sagrados direitos do Homem. É para convir que o terreno se lhe apresentava propício, com a revolta em estado latente.
O clero pernambucano, que sentia os reflexos das atitudes do Bispo Azeredo Coutinho, maçon resoluto, não podia permanecer inerte, indiferente face a face, do programa da Maçonaria. Ele se atirou indômito, com desassombro, à luta em defesa da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Os padres de Pernambuco não só se aliaram aos maçons; mais do que isto: entraram para a Maçonaria, que os acolheu com prazer. E entraram em número elevado. E ocultava a sua qualidade de maçon.
Embora os planos discutidos – às vezes em segredo; outras nem tanto – não previssem a imediata tomada do Governo, ferviam os ânimos da sociedade recifense. Unidas estavam, de um lado, as vertentes intelectuais (propagadoras das novas idéias vindas da Europa, dos Estados Unidos e da América espanhola, exaltando o pensar iluminista e anti-colonialista), os brasileiros militares e os cultivadores e comerciantes, máxime da emergente camada social algodoeira; do oposto, pela manutenção do status quo, os portugueses e produtores canavieiros apoiados pela Coroa.
O Capitão-General e Governador conhecia a realidade, porém minimizava as eventuais conseqüências da situação na qual se encontrava a Capitania. Segundo anota Oliveira Lima:
Caetano Pinto percebia perfeitamente que em torno dele se agitavam todos esses ciúmes nacionais, todos esses gravames econômicos, todos esses conflitos de ideais e de interesses, mas era do seu feitio filosofar sobre o caso, desculpar a efervescência em vez de procurar abafá-la pela violência, temendo e não sem acerto que a repressão prematura fosse uma provocação contraproducente. Daí a frase que lhe atribuem: ‘os maçons divertem-se: nada farão... ’.
Para agravar, naquele instante, vivia-se a crise das próprias culturas algodoeira e canavieira, derreadas tanto por força da cáustica seca de 1816 quanto pelo baixo preço internacional. A tal ponto elevado o grau das antigas e persistentes intrigas e insultos entre portugueses e brasileiros, precipitaram-se os fatos quando o capitão José de Barros Lima (bandeado aos insurretos), reagindo à voz de prisão dada por ordem governamental, matou a golpes de espada o comandante monarquista Manuel Barbosa de Castro.
Deflagrada estava, a 06 de março de 1817, a giravolta, proclamando-se a independência da capitania e constituindo-se, em forma provisória, no seguinte dia 07, o “Primeiro Governo Republicano do Brasil”, composto por: João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro (Padre); Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa (Capitão Militar); José Luiz de Mendonça (Magistrado); Coronel Manuel Correia de Araújo (Agricultor); e Domingos José Martins (Comerciante). Para secretário foi designado o Padre Miguelinho, que, nessa qualidade, e tendo sido um dos mentores intelectuais do movimento, proferiu a já conhecida Proclamação ao Povo de Pernambuco.
Consoante Tenório d’Albuquerque, “Com exceção de Manuel Correia de Araujo; os demais eram maçons, o que comprova o caráter maçônico da Revolução de 1817.” . É de se observar, diante de tudo quanto aqui foi dito, que não apenas de jaez maçônica, mas também sacerdotal era o levante revolucionário.
O movimento estendeu-se à Paraíba e ao Rio Grande do Norte. Visava-se à separação, relativamente ao Reino, da parcela territorial composta por essas três capitanias, e, nas palavras de Tavares de Lyra, “(...) foi, sem dúvida, uma explosão de revolta contra o absolutismo português e uma inequívoca firmação dos elevados ideais, que, desde o fim do século XVIII, trabalhavam a alma nacional em suas nobres aspirações de justiça e liberdade.”
Participaram da sublevação exponenciais figuras como o padre carmelita Joaquim do Amor Divino Caneca (Frei Caneca), Manoel de Carvalho Paes de Andrade, José Martiniano de Alencar (pai do escritor José de Alencar), vigário Virgíneo Rodrigues Campelo, monsenhor Francisco Muniz Tavares, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (irmão de José Bonifácio), Gervásio Pires Ferreira e Cypriano José Barata de Almeida (o Dr. Barata).
Salientemos que alguns desses, acrescidos a outros patriotas, da mesma forma idealizaram e promoveram, em 1824, a Confederação do Equador, igualmente havida em Pernambuco, aqui se destacando o Frei Caneca e Paes de Andrade, este que, de tanto admirar o ideário político estatunidense, batizou as filhas Carolina, Filadélfia e Pensilvânia.
Sabemos ter o Padre Miguelinho composto, na qualidade de mentor, consultor e secretário, o Governo Provisório Republicano instalado em 1817. É factível deduzir, logo, que não somente redigia, mas mantinha sob a sua guarda talvez todos os principais documentos administrativos da governança, afora, quase decerto, aqueles onde registrados os planos da insurreição; ou seja, um completo e circunstanciado acervo documental demonstrativo das inúmeras providências adotadas objetivando a consecução de tais empresas, com os respectivos nomes, assinaturas e descrição das atividades de tantos quantos foram os seus partícipes.
Dão os historiadores conta de que o clérigo, ao saber sufocado o evento sedicioso, em vez de fugir para Paulista junto a muitos revoltosos, incontinente preocupou-se por se recolher à sua casa em Olinda, intentando, com o auxílio da irmã, Clara de Castro, destruir a totalidade da documentação que guardava consigo, a qual comprovava o envolvimento de todos os seus pares amotinados, demonstrando, de tal arte, incontestáveis bravura e companheirismo. Esse gesto de grandeza foi assim descrito por Câmara Cascudo:
Na reação monárquica, o Padre não fugiu. Ficou na sua casinha de Olinda, ao lado da irmã Clara, aproveitando a última noite de liberdade, 20 para 21 de maio de 1817, para queimar o arquivo, inutilizando as provas comprometedoras para centenas de vidas.
E estas haveriam sido suas palavras: “Mana, nada de choro. Está órfã. Tenho enchido os meus dias, logo me vêm buscar para a morte. Entrego-me à vontade de Deus e nele te dou um pai que não morre. Mas aproveitemos a noite e imita-me: ajuda-me a salvar a vida de milhares de desgraçados.” 
Preso em 21 de maio de 1817, foi levado à fortaleza das Cinco Pontas. Depois, transportado para Capitania baiana, desembarcando em Salvador a 10 de junho, onde o julgou, no dia 11, a Comissão Presidida pelo Conde dos Arcos, havendo-se em seu interrogatório o episódio de exemplar destemor narrado ao início deste trabalho. Com as seguintes palavras instara-lhe o Conde a quebrar o silêncio no qual se mantinha:
Padre, não cuide que somos alguns bárbaros e selvagens que somente respiram sangue e vingança; fale! Diga alguma coisa em sua defesa!” ‘E porque o silêncio continuava ainda mais profundo, pergunta-lhe o Conde, como querendo insinuar-lhe a evasiva:’  ‘o Padre não tem inimigos? Não seria possível que eles lhe falsificassem a firma e com ela subscrevesse todos ou parte dos papéis que estão presentes? 
Eis a resposta de Miguelinho em face desse questionamento: “Não, senhor, não são contrafeitas; as minhas firmas nestes papéis são todas autênticas, e, por sinal, em um deles o ‘o’ de Castro ficou metade por acabar, porque faltou papel”, dando ensejo à sentença condenatória , assim traçada:
Vendo-se nesta cidade da Bahia o processo José Martins, José Luiz de Mendonça, Padre Miguel Joaquim de Almeida Castro, José Pereira Caldas e Padre Bernardo Luiz Ferreira Portugal; auto do corpo de delito, testemunhas sobre eles perguntadas e interrogatórios feitos aos mesmos réus; decidiu-se uniformemente, e por todos os votos, que as sobreditas culpas se achavam plenamente provadas, e os réus delas incursos nos §§ 5º e 8º, do Livro 5º, das Ordenações do Reino, e mandam que se executem nos sobreditos réus as penas do §9º, da mesma Ordenação que diz: ‘e em todos esses casos e em cada um deles, é propriamente cometido o crime de lesa-majestade, e havido por traidor o que o cometer, e sendo o cometedor convencido por cada um deles, será condenado que morra natural, cruelmente, e todos os seus bens que tiver a tempo da condenação serão confiscados para a Coroa do Reino, posto que tenha filhos, ou outros descendentes, havidos antes ou depois de cometido o tal malefício. Entendem, contudo, os Ministros da Comissão Militar que por perfeita segurança de suas consciência, devem fazer uso da permissão concedida a tais tribunais, recomendando Manoel José Pereira Caldas e Bernardo Luiz Ferreira Portugal a ilimitada beneficência de S. M. El-Rei, nosso senhor, em atenção a decrepitude do primeiro e circunstância de ser ele natural da Província do Minho e por isso provável a violência, que o forçara a aceder ao partido pernambucano, partido que pêlos autos consta ser o único forte supremo e a quem convinha para os seus danados fins associar nos dias últimos de março indivíduos da Europa. Em igual atenção a carta da que o segundo oferece quando assegura ter feito, ainda no calor da revolução seu testamento em que declara fiel vassalo D’El-Rei, nosso senhor, e a que ajuntava documentos, que talvez minorem o seu crime e lhe sejam baldados pela brevidade da sentença. – Bahia, em Comissão Militar, 11 de junho de 1817. Henrique de Melo Cortino de Vilhena, Relator, Manoel Pedro de Freitas Guimarães, Major, Manoel Gonçalves da Cunha, Major, José Antônio de Matos, Tenente-Coronel, Manoel Fernandes da Silva, Tenente-Coronel, Joaquim José de Souza Portugal, Coronel, Antônio Frutuoso de Menezes Dória, Coronel, Felisberto Caldeira Brant Pontes, Brigadeiro, Manoel Joaquim de Matos, Brigadeiro de Legião, D. Marcos, Conde dos Arcos, General.
Na manhã do dia seguinte (12 de junho), ao ouvir José Luiz de Mendonça, seu companheiro de infortúnio, praguejar emprazando aos infernos os Juízes da Comissão, disse-lhe Miguelinho: “Querido amigo, façamos e digamos unicamente aquilo para o que temos tempo.”; e, ajoelhados diante do crucifixo, passaram a repetidamente rezar o salmo Misere Meu Deus, vindo às 4 (quatro) horas da tarde a ser arcabuzado, sendo seus restos mortais “inumados no antigo cemitério do Campo de Pólvora, reservado aos pobres e aos que padecessem de morte violenta”, de acordo com Adauto Câmara .
Dessarte, além de demonstrar altíssimo grau de coragem e prestimosidade, partindo da premissa de que os líderes cujas provas contra si incriminadoras foram destruídas viriam a ser os mesmos da seguinte Confederação do Equador, ouso afirmar que tal gesto resultou importantíssimo para a conflagração de 1824. Logo, o Padre Miguelinho foi de inestimável importância para ambas as insurreições; a segunda, mesmo depois de morto.
Emocionantes as palavras de Tenório d’Albuquerque, só que tendo em vista a independência do País, proclamada cinco anos após:
O sangue derramado pelos pernambucanos na arrancada trágica em busca de Liberdade reviveceu. Ele encorajou outros maçons que comungavam o mesmo Ideal Santo e poucos anos depois, o Brasil emancipava-se. Os mártires sobreviveram.Gloriosos os que sabem fraternalmente morrer pela Liberdade do próximo, com o pensamento em Deus, o Grande Arquiteto do Universo.
E não só isso: considerando ainda que, respeitadas as idiossincrasias, as rebeliões geralmente inspiram e induzem umas as seguintes em cadeia progressiva temporal, essas havidas em Pernambuco, sem dúvida, tiveram o condão de influenciar as subseqüentes, a saber: a “Cabanagem”, a “Farropilha”, a “Sabinada”, a “Balaiada”, e a “Praieira”, que, mesmo depois de declarada a independência do País, continuaram se insurgindo contra a manutenção do regime absolutista, então sob a forma Imperial; repita-se, cada uma insuflada por características e proposições paralelas próprias.
Sempre há especulações, sobre a realidade hodierna, se determinado fato histórico tivesse seguido rumo distinto daquele no qual se houve. Sobreleva-se entre os estudiosos a tese de que ao País foi melhor ter vingado a forma condutora adotada por José Bonifácio (em contraste à de Gonçalves Ledo, parecida com a Pernambucana). Segundo argumenta-se, a primeira teria preservado a unidade do território e povo, o que conferiu maior poder sócio-econômico nacional, em detrimento da segunda, que levaria à divisão, dando azo à formatura de diversos países e, conseqüentemente, esta parte da América do Sul resultaria igual ou parecida com a chamada América espanhola; é dizer, composta por várias nações de tamanho reduzido.
Entretanto, incabe neste trabalho fazer juízo de valor especulativo sobre os resultados provenientes ao Brasil acaso sagrassem vencedoras as idéias extremadas. (E, se tal fosse o objeto, eu não o saberia elaborar). O certo é que, de qualquer sorte, um pouco mais tarde (72 anos a seguir), à força de alguns levantes sociais (e, por que negar, ajudados pela passividade da realeza) chegou-se gradativamente à República, proclamada e desenvolvida com seus inúmeros, pertinazes e gravíssimos defeitos, mas evoluindo ao que somos hoje.
E se me é permitido dizer, bem ou mal, parece ser esse o espírito; o caráter nativo brasileiro: sem paralisar-se, contudo evitando açodar-se, caminhar procurando trilhas menos tormentosas e difíceis, visando a alcançar os seus interesses. Seria a raiz e o fruto da miscigenação tratada pelo sociólogo Gilberto Freyre, entrementes, não isenta de ferozes críticas, como a exposta pelo etnólogo e antropólogo Darcy Ribeiro à “Casa-grande & Senzala”, na Biblioteca Ayacucho de Caracas, em Venezuela, publicada na 42ª edição dessa obra .
Insisto: em mor parcela, somos um povo moderado. Todavia, há em grande número dentre nós os sobremaneira aguerridos, corajosos, destemidos, dasassombrados, exaltados (ambos os grupos, sábios; e, ao que se vem constatando, conjugadamente reprodutores de um terceiro e novo conjunto humano que se caracteriza pela amálgama desses opostos atributos, e, portanto, de superior sapiência: os genuínos brasileiros). Salve a mescla; o equilíbrio antropológico. Quiçá o “Indomado guerreiro e gentil” de que fala o hino do Rio Grande do Norte, trazendo-me à memória o Padre Miguelinho, de predicativos sem os quais a humanidade não se despregaria do status quo.
Eis o valor de homens e mulheres como Miguelinho,que, mesmo dentro da igreja e dela fazendo parte, contestava-lhe os erros, exaltando a razão; que esperou ser preso pelos contra-revolucionários como única forma de preservar a vida de tantos valorosos homens, parecendo a antever-lhes figuras de proa nos embates seguintes opositores ao jugo português; e que, ao cabo, sacrificou a própria vida para mostrar a convicção da justeza de suas idéias.
Todavia, repitamos (com letras grandes), em favor da fidelidade histórica, que o Padre não era daqueles radicais exaltados. Muito pelo contrário: denotava serenidade, brandura, temperança, comedimento, prudência, compostura, mansuetude, calma, sobriedade. Porém, ao mesmo tempo, detinha luz, confiança, inerrância, indubitabilidade, liquidez, segurança, solidez, positividade, incisividade, isto é, convicção. E não se opõem esses caracteres. Tratava-se de pessoa comportamentalmente plácida, mas com ideais tão profundos e, com o tempo, moldados e solidificados segundo a realidade, a ponto de conceder-lhe poder de passar eficaz crédito na exposição do próprio pensar. Disse Câmara Cascudo:
Uma testemunha coeva, estrangeiro imparcial e até certo ponto hostil, o francês Tollenare, informava na sua NOTAS DOMINICAIS, referente a 23 de março de 1817:‘O Padre Miguelinho é um homenzinho cujo espírito mais lento, não é menos vasto nem menos penetrante; os seus juízos são críticos e muito próprios a contrabalançar o ardor dos do seu colega’.Este colega arrebatado era o Vigário de Itamaracá, Padre Pedro de Souza Tenório.
Nesta quadra do panegírico eu não poderia deixar de aludir (posto tratar-se de conterrâneo e comandante da mesma revolta de 1817 em solo potiguar) a André de Albuquerque Maranhão (1775 – 1817).
Reporto-me, de início, ao fato de o Governador da Capitania, José Inácio Borges, haver-lhe encarregado de deter a invasão do motim na fronteira do Rio Grande do Norte, acontecendo que se procedeu exatamente ao contrário das ordens governamentais recebidas.
Sobre o episódio, há os críticos da postura de ambos. Contra Albuquerque, por haver traído a confiança do governo. Contra Borges, por ter atribuído ao outro a defesa do Rei, mesmo conhecendo as simpatias liberais professadas por toda a família Albuquerque Maranhão; aliás, grupo familiar (rico e influente) com o qual sempre procurara manter estreitos laços de amizade em benefício da governança, ou, na linguagem moderna, da governabilidade.
Quanto a José Inácio Borges, Tavares de Lira defende-o afirmando que ele, a despeito de simpatizar discretamente com a sublevação (até porque era amigo pessoal do Padre João Ribeiro, “(...) o mais ilustre dos membros do governo revolucionário do Recife, (...)”, não deixou de adotar, ante as circunstâncias, as medidas administrativas que lhe competiam em favor da Realeza. Assere, porém, haver o Senado da Câmara do Natal dirigido carta ao Rei de onde constava o seguinte trecho: “o governador não duvidou quebrar o juramento prestado nas sagradas mãos de V. R. M. quando abandonou esta cidade ao chefe dos rebeldes, figurando ser por ele preso (...)”. Também fala do comentário feito pelo Desembargador Bernardo Teixeira Coutinho Alves, segundo o qual se tratava de governador hipócrita, traiçoeiro e cheio de má-fé. E informa ter Muniz Tavares, acerca dessa personalidade, dito tratar-se de: “Suspeito ao partido português e instituído nos votos dos patriotas brasileiros; ... sem firmeza de convicções, iludindo a todos que ainda o julgavam um correligionário,... enfim, um daqueles que tão comumente costumam desertar de seu posto nas grandes comoções políticas, fugindo ao cumprimento do dever e dando provas de fingido patriotismo.
Esse desencontro de julgamentos, como sói acontecer na guerra e nas grandes controvérsias públicas, quando (parafraseando Ésquilo, poeta e dramaturgo grego) a verdade é a primeira vítima, faz-me lembrar o personagem Perilo Ambrósio, satírica e jocosamente registrado por João Ubaldo Ribeiro ao romancear a refrega pela independência da Bahia (a qual não foi tão pacífica quanto à proclamada às margens do Ipiranga em 1822, tanto que se delongou a julho de 1823).
Certo mesmo é que André de Albuquerque Maranhão e seus comandados passaram-se para a banda dos amotinados e prenderam o Governador, estendendo a crise pernambucana ao Rio Grande em 25 de março de 1817; organizou, juntamente com pessoas representantes da sociedade, o governo provisório, compondo-o na qualidade de presidente; sofreu imediata contra-revolta, liderada pelo capitão Antônio Germano, a 25 de abril seguinte, ocasião na qual teriam se dado os fatos a seguir:
A esse grupo reúne-se Antônio Germano com sua companhia, e assim incorporados dirigem-se ao palácio. Galgam de tropel as escadas e vão surpreender o indefeso Albuquerque sentado à mesa de trabalho. Germano intima-lhe voz de prisão, e o declara deposto no meio do alarma nas ruas e dos gritos, sediciosos aí, de: ‘Viva o Senhor D. João VI! Morra a liberdade!Era grande o alvoroço e a tumultuária vozeria dos que afluíam para dentro do palácio e suas imediações. Nessa confusão André de Albuquerque levanta-se e encaminha-se a uma das janelas do sobrado do palácio, como se quisesse por ela precipitar-se, preferindo talvez a morte desastrosa a acabar às mãos de seus encarniçados inimigos. Prevendo sem dúvida sua intenção, o capitão Antônio José Leite, com aparência de cordialidade, estende-lhe o braço sobre os ombros, como para impedir esse desastre, e exclama: ‘Não faça isto, senhor coronel’, ao mesmo tempo que o oficial de 2ª linha ou política Francisco F. da Fonseca, à traição, por baixo da mesa, crava-lhe a espada no baixo ventre, região inguinal. (...). Era grave o ferimento, e pela cesura saíra parte do intestino, ficando pendente. Copioso sangue jorrava pela sala, onde afinal, exausto de forças, caiu o mártir dos princípios liberais, assim tendo se sacrificado pela emancipação de sua terra, (...).
É indubitável serem as guerras e as revoluções em demasia confusas e psicologicamente delicadas, o que torna muito temerário valorar a respeito da forma como se conduziram ou venham a se conduzir os semelhantes que foram ou venham deles a ser coevos. Sobretudo aqueles partícipes à testa ou no centro dos fatos. Inconcebível não se ter em conta sempre e sempre o natural e primitivo instinto de sobrevivência que em nós está por completo impregnado (força da auto-preservação e perpetuação da espécie). Mas, atino ser de fundamental importância que a sociedade se preocupe sem descanso em conhecer, estudar, refletir e discutir tais eventos, objetivando criticar-se a si própria e no escopo de evoluir visando ao bem estar geral.
Daí o motivo de trazer-se à baila a participação do Governador da capitania norte-rio-grandense, e fazendo paralelo com o personagem Perilo Ambrósio; porém, com a prevenção de registrar as ressalvas de Tavares de Lira tendentes a contradizer os que reprovaram as atitudes do Governador. Acrescento entender não ser desrespeitosa a coincidente lembrança da passagem narrada por João Ubaldo Ribeiro, pois ao contrário de mover-me a intenção da pilhéria (absolutamente incabível em assuntos tão sérios), apenas me motiva a provocar o franco contraditório, que é o confiável caminho para se chegar à verdade ou, pelo menos, o mais próximo dela; repito, na busca da evolução benigna da sociedade.
Impulsionado por tão relevante escopo, faço agora um contraponto às ações do Padre Miguelinho em 1817, transcrevendo excertos da defesa apresentada pelo Padre Feliciano José Dornelas, vigário de Natal à mesma época, quando pronunciado por haver composto o governo republicano instalado por “Andrezinho do Cunhaú” (assim cognominado no “Livro de Vereações” de 1815 a 1823). Não sem antes, todavia, salientar o escrito por Muniz Tavares a respeito dos integrantes do apontado governo: “‘Os nomeados, não recusaram a nomeação: o poder agrada; nem foram aplaudidos nem vituperados. Dirigiram-se em corpo à Matriz, onde renderam-se ações de graças ao Todo-Poderoso, e foi esta a maior ação com que se assinalaram no curto espaço de tempo em que figuraram’”. Apud Tavares de Lira, pág. 229, que assim complementou: “Todos, porém, alegaram depois da contra-revolução, e quando André de Albuquerque já não existia, que tinham recusado a indicação, sendo obrigados a servir sob ameaças; (...).” (Ob. e pág. cits.).
Muito bem. Depois dessas observações preliminares, confiramos as palavras do vigário de Natal, em defesa própria:
“Vendo-me obrigado, em razão dos acontecimentos que caracterizam a época presente, a expor na respeitável presença dos magistrados de Sua Majestade qual tem sido a minha conduta em colisão tão melindrosa, devo fazê-la conhecer pelo lado físico e moral, e mostrar-lhes que até o presente a religião, a honra e a fidelidade ao Nosso Augustíssimo Soberano têm dirigido todas as minha ações. Esta freguesia toda é testemunha da minha exatidão em cumprir e desempenhar os sagrados deveres, a que sou obrigado como cristão, como vassalo e como pastor. Como, porém, na infeliz época em que os mais ingratos de todos os homens, calcando aos pés os mais santos deveres, fantasiaram na sua depravada imaginação um governo anárquico, irregular e anômalo, contra todas as formas e contra o direito das gentes, eu, obrigado pela força e pela violência, fui um dos que o malvado e faccioso André de Albuquerque Maranhão, unido com os seus parentes, à frente das tropas que estavam confiadas ao seu comando, no augusto nome de Sua Majestade, para defesa desta capitania, nomeou membro do tal governo anárquico, ameaçando logo com a perda da vida e bens aos que não anuíssem aos seus caprichos. Não tive outro remédio mais que curvar o pescoço debaixo do seu tirânico e aleivoso jugo, e ceder à violência, esperando conjuntura mais feliz em que pudéssemos aclamar o nosso Augustíssimo Soberano e darmos as provas mais evidentes da nossa fidelidade ao mesmo real Senhor.---------
Continuei a assistir às sessões, não como usurpador da jurisdição d’El-rei, meu Senhor, mas como fiel servidor do benfeitor e fidelíssimo Soberano. Mudei o projeto de sair desta freguesia no de ficar nela, a fim de animar ocultamente os meus paroquianos a tão santa empresa, e até mesmo (seja-me lícito dizer em minha defesa) no confessionário exortava aos pais e mães de família a serem sempre fiéis ao seu Rei e cumprir exatamente os seus deveres, e nas missas conventuais lhes fazia rezar uma Salve Rainha por intenção para a qual eu aplicava pelo meu Soberano.” (In: Tavares de Lira, ob. cit., págs. 245/246).
 Meu grande mestre e irmão Diógenes da Cunha Lima, em sua última obra literária , referindo-se exemplificativa e alternadamente a André de Albuquerque Maranhão e ao Vigário Feliciano Dorneles é incisivo afirmando que “A Revolução de 1817 teve muitos heróis e muitos acovardados. (...) Tivemos República cinco anos antes da Independência e do Reinado, heróis e anti-heróis.
De todo modo, o julgamento da história (aliás, dizem-na ser escrita pelos vencedores), na mor parte das vezes confere os louros àqueles que se sacrificaram em defesa de suas convicções, máxime quando estas vão, pelo menos teoricamente, ao encontro do progresso moral e do bem estar social. Lembremo-nos de que as importantes revoluções daqueles idos inspiravam-se nos valores dos direitos humanos, aspirações ainda hoje, em muitos lugares, carentes de defesa e efetividade na civilização.

São direitos que, propagados antes de Cristo por filósofos como Platão, Aristóteles e Heráclito, passaram a se positivar a partir da Magna Carta de 1215, e se aperfeiçoar contínua e principalmente com a Declaração dos Direitos (Bill of Rights), na denominada Revolução Gloriosa de 1688; na Constituinte da Revolução Francesa, em 1789, quando aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; na Constituição de 1848 desse mesmo País; nas Constituições do México, de 1917, e da Alemanha (Weimar) de 1919; vindo a culminar com a proclamação, pela ONU – Organizações das Nações Unidas, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual tem por objetivo “... que cada indivíduo e cada órgão da sociedade ... se esforce, mediante o ensino e a educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades ...”, cabendo, por ilustrativo, resumir os seus artigos I,VII, XVIII, XIX, XXI, XXII e XXIX, assim: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns em relação aos outros com espírito de fraternidade; (...) são iguais perante a lei e têm direitos sem qualquer distinção, a igual proteção da lei; (...)têm direito a liberdade de pensamento, consciência e religião (...) à liberdade de opinião e expressão (...); de acesso ao serviço público de seu país; (...) à segurança social e à realização (...) dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade (...) sujeitando-se apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com  fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Domingo que vem, publicaremos a última parte.

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