“Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.” (Eclesiastes)
Procurando algo na internet dia desses, deparei-me com postagens sobre contos de Machado de Assis e comecei a lê-los, um seguido do outro. Escrevi certa vez que um livro é clássico quando pode ser lido em qualquer época e continua absolutamente atual. Bem, não preciso nem dizer que Machado de Assis é um dos mais clássicos dos clássicos.
O conto O Espelho me levou a pensar na questão da aparência versus mundo interno, ou seja, o “eu” que os outros veem e o “eu verdadeiro”, aquele que está dentro de mim. O conto é curto e genial. Assim, minha sugestão é: leia. Leia logo, o quanto antes. Ele é de Domínio Público, podendo ser lido gratuitamente.
O conto fala sobre um homem que acreditava que somos feitos de duas almas, “uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…”. A alma que olha de dentro para fora seria nosso “eu interior” e a que olha de fora para dentro seria a forma como os outros nos veem, o personagem que criamos, a imagem – o perfil nas redes sociais, talvez…
No conto, o homem era pobre e quando foi nomeado alferes da Guarda Nacional, muita coisa mudou para ele. O posto militar lhe trouxe um reconhecimento externo, um status, que ele não tinha antes. Ele passou a ser visto pelos outros como alferes. E eis que as duas almas que ele considerava como duas metades da mesma laranja tornam-se apenas uma.
“O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado”.
Fico imaginando que “a cortesia e os rapapés da casa” hoje em dia se traduzem em curtidas, compartilhamentos, comentários e visualizações nos nossos perfis em redes sociais; ou em reconhecimentos públicos, entrevistas, alguma aparição na mídia ou momentos de fama instantânea; ou ainda privilégios que essa carcaça externa que vestimos muitas vezes nos proporciona, como tratamento diferenciado por se apresentar como médico, por exemplo.
E a “parte mínima de humanidade” acaba absolutamente sombreada e raquítica por trás dessa nossa “patente”, dessa nossa máscara, dessa nossa imagem, dessa nossa “alma exterior” que depende totalmente dos olhos dos outros.
No entanto, o conto continua. Devido justamente a esse novo status alcançado, foi convidado por uma tia a passar uns dias em sua fazenda e foi presenteado com um espelho por ela. Por motivos que não vou contar aqui, para não estragar a leitura do conto, ele se vê totalmente sozinho na fazenda por uns dias e perde completamente sua identidade. Ao se olhar no tal espelho, não consegue mais ver sua imagem nítida. Ele via apenas um borrão. O problema somente se resolve quando ele decide vestir a farda novamente. Com a farda, ele volta a se reconhecer no espelho; voltara a ser o alferes.
O conto termina assim e nós ficamos com aquela sensação incômoda no estômago.
Leia Porque a vaidade é um vício - Parte 2
Publicado originalmente no blogue O Ponto Dentro do Círculo
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