transcendência imanente
Ernst Tugendhat
Não existe, obviamente, um conceito de transcendental, pois esta palavra tem sido usada em vários sentidos. Ela significa "o que é ou vai além". Na filosofia medieval, chamavam-se conceitos transcendentais aos mais universais, ou seja, aqueles que vão além das distinções entre diferentes categorias. Na idade moderna, o uso mais comum da palavra designa o supra-sensível como aquilo que está além do mundo espaçotemporal. Se acreditarmos que os homens têm uma relação essencial com algo suprasensível tal como as idéias de Platão ou um Deus que está além do espaço, então, esta relação com algo transcendente pode ser chamada de relação transcendental.
Muitos falam do metafísico neste mesmo sentido e quando dizem que a metafísica acabou, querem dizer que a crença numa coisa transcendente não se pode mais justificar. Neste sentido, o transcendente tem, em primeira instância, um sentido ontológico, quer dizer, refere-se a um tipo de ente; mas, também, pode-se dizer que este uso tem um sentido psicológico-antropológico, isto é, que os seres humanos relacionam-se não somente com o mundo espaço-temporal, mas também com o que transcende este mundo. Neste segundo sentido, ou seja, no antropológico, pode-se dizer que transcendência refere-se à relação dos seres humanos com o que está além. Transcender adquire assim um sentido dinâmico: refere-se às atividades dos homens que consistem em transcender.
Hoje duvidamos do transcendente neste sentido: muitos de nós não acreditamos que fomos criados por Deus ou que temos alguma relação com algo transcendente, com uma região divina ou extramundana. Somos uma espécie animal. Isto não significa que não haja nada que nos distinga dos outros animais, mas o traço distintivo tem que se entender de uma maneira natural. Ele tem que ter surgido por meio da evolução, da mesma maneira que as outras características surgiram. Esta postura é chamada de “naturalismo”.
Nietzsche foi um dos filósofos mais importantes entre os que propuseram a doutrina naturalista e que criticaram o transcendentalismo. Segundo Nietzsche, já não temos boas razões e nem bons motivos para acreditar em Deus. Num célebre aforismo da Gaia Ciência (§ 125), Nietzsche designa este fato como a morte de Deus. Segundo ele, sem Deus também a moral tradicional perde seu fundamento. Uma coisa que distingue Nietzsche de outros naturalistas foi o fato de que levou muito a sério a característica humana de transcender para algo. O que diferencia o homem de outros animais é que sua vontade vai além: para a vontade humana parece ser necessário que todo querer seja entendido em relação a um sentido da vida. O sentido da vida consistia antes, precisamente, na relação com o transcendente sobrenatural, ou seja, com Deus.
Nietzsche mantém, porém, que se já não podemos manter esta crença, nossa vontade cai primeiro num vazio, no nada. Ele ainda diz: "Antes de nada querer, a vontade quer o nada". Isto é o que Nietzsche chama de "decadência" ou "niilismo". Aqui o conceito do transcender humano, do ir além, adquire um sentido mais amplo. O conceito básico é agora o de estar dirigido a um sentido da vida e o fato de que este sentido consista em algo supra-sensível é só um conteúdo entre outros. Nietzsche estava convencido de que o homem necessita para viver de um sentido da vida e, por isso, viu a sua tarefa numa reavaliação dos valores, segundo a qual os homens deveriam ver o sentido da vida na própria vida.
Ao invés de obedecer aos valores dados (valores supra-sensíveis), o homem criaria seus valores. Isso significa que a transcendência para o sentido da vida voltar-se-ia para o interior do próprio ser humano. Poder-se-ia, então, falar de uma transcendência imanente, quer dizer, de um ir além que precisamente não seria um ir a algo além do natural, mas um ir além do ser do homem. Existe uma estrutura da transcendência imanente? E se é assim, como teríamos que entendê-la? Nesta conferência vou ocupar-me desta pergunta. Primeiro, quero mostrar como foi abordada por Nietzsche e, depois, vou investigar de que outra maneira poderia ser vista.
Já mostrei que, segundo Nietzsche, se os valores da vida não nos são dados por Deus, então teriam que ser criados pelos homens. A idéia da criação é central em Nietzsche, mas como entendê-la? Uma possibilidade aqui é a arte. Pode soar muito convincente que a arte é o que dá sentido à vida. Nietzsche acreditava também que os valores morais, se não são dados pela religião, devem ser vistos como fundamentados no estético. Porém, isto deveria ter uma base mais fundamental. Como devemos redefinir a vontade humana se devemos entendê-la como sendo a base tanto da moral como do estético? Finalmente, sua resposta foi: o ser do homem (e não só do homem, mas de todo ser vivo) tem que se entender como vontade de poder.
Com este conceito - vontade de poder - Nietzsche acreditou responder todas as perguntas que lhe teriam ficado abertas. Por um lado, acreditou poder interpretar toda arte como expressão do poder; por outro, já havia tentado mostrar que o egoísmo é a motivação básica de todas as atividades do homem, também das atitudes morais. Sendo assim, Nietzsche chegou a pensar que no conceito de vontade de poder tinha encontrado a quinta-essência do egoísmo. Em terceiro lugar -e isso era para ele o aspecto central- a idéia de vontade de poder podia cumprir com o requisito de transcendência dentro da imanência. A vontade de poder podia ser entendida como uma fonte de ação que por si mesma pressiona a um além e que isso é o que dá sentido à vida. Finalmente, em quarto lugar, Nietzsche pensava que com este conceito teria encontrado a estrutura não só do homem, mas de todo ser vivo e ainda de todo ser natural.
Mas há, obviamente, uma série de objeções. O problema mais grave é que Nietzsche nunca apresentou um esclarecimento preciso sobre como se deve entender a palavra "poder". Assim como ele a usa, misturam-se dois sentidos. Primeiro, ter poder significa ter poder sobre a vontade dos outros. Mas Nietzsche também entende a palavra num sentido mais inocente, num sentido de força e potência, de capacidade. Somente porque a palavra pode ser entendida no sentido de capacidade é que Nietzsche pode interpretar a criação e a arte como manifestação de uma vontade de poder. Naturalmente, a palavra "força" pode, por sua vez, ter uma multiplicidade de sentidos. Pode ter o sentido de força física, usado particularmente por Nietzsche em muitos lugares em combinação com o sentido de poder sobre outros. Mas Nietzsche também a usa, por exemplo, no sentido de domínio de si mesmo.
Se Nietzsche tivesse entendido "poder" só no sentido de capacidade, a sua teoria seria quase vazia porque isso deixaria aberto para a pergunta: capacidade de quê? Torna-se, então, essencial para ele entendêla no sentido de poder sobre os outros, mas para esquivar-se de objeções óbvias continua usando a palavra no sentido mais geral. Por exemplo, parece impossível subordinar a criação à idéia de dominação dos outros. Pode-se admitir que em muitíssimas atitudes humanas, também em muitas de aparência moral, o desejo de dominar os outros é um fator importante, mas parece estranho crer poder reduzi-las a mero desejo de dominação. Ainda que admitíssemos que a motivação de toda ação humana é egoísta, não parece plausível que a meta de todo egoísmo seja o domínio dos outros.
É isso que se pode objetar também contra a idéia de que a meta de toda atividade biológica é a dominação. Com a tese de que a vontade de poder é essencial não só para a vida humana, mas para toda a vida, Nietzsche perde o fio condutor que tinha sido a pergunta pelo "ir além" especificamente humano e pelo sentido da vida. Os outros animais, com certeza, não se relacionam com o problema do sentido da vida. Não parece, então, que Nietzsche tenha encontrado com seu conceito de vontade de poder uma resposta compreensiva à questão de como entender o biológico em geral, nem como entender o ser humano e, em particular, aquele traço de transcendência que se pode chamar "ir além".
Se deixarmos de lado o aspecto específico do poder e reduzirmos o que Nietzsche diz à idéia mais plausível do egoísmo, encontramo-nos diante da pergunta: é certo que se reduza o ser humano a isso uma vez que se eliminou a relação com o supra-sensível? O desafio de Nietzsche apresenta-se particularmente em duas áreas: uma é a moral e a outra, a antropologia filosófica. Quanto à primeira, perguntaríamos se é certo, como Nietzsche acreditava, que fora da religião, a moral, no sentido tradicional, não tem fundamento. Mas não me ocuparei dessa pergunta aqui. A minha pergunta vai ser: se não nos convence a maneira como Nietzsche imaginou uma transcendência dentro da imanência, de que outra maneira temos que entendê-la? E o que é essencial no ser do homem? Esta é uma pergunta que é tratada pela antropologia filosófica.
O que significa “antropologia filosófica?” A antropologia filosófica distingue-se da antropologia enquanto etnologia que é o estudo de diferentes culturas humanas (em inglês, se chama "cultural anthropology"). A antropologia filosófica é usada para designar o que é que distingue o homem em geral de outros animais. Talvez uma pergunta tão geral pode parecer exagerada. O homem não existe sempre em condições históricas concretas? Mas esta pergunta geral pelo homem como tal em contraste com suas diferentes condições históricas não é mais extravagante do que a pergunta geral pela moral, pela estética ou pela teoria da ação em contraste com uma moral particular, etc.
O fato de que hoje não se conheça uma disciplina denominada “antropologia filosófica” é, na realidade, uma coisa estranha que só pode ser explicada historicamente. Na verdade, o que Nietzsche fazia não era outra coisa senão antropologia filosófica. Um pouco mais tarde, nos anos 20 do Século XX, formou-se na Alemanha uma corrente que se chamou “antropologia filosófica”, cujos representantes importantes foram Scheler, Plessner, Gehlen e também Heidegger pertencia a esta corrente. Pode-se dizer que toda filosofia, desde Platão, tem como núcleo a pergunta pelo modo como devemos entender a nós próprios, ou seja, "o que é o homem?", mas que na filosofia tradicional a orientação para o supra-sensível fez com que se considerasse a metafísica a disciplina primária da filosofia.
Pode-se dizer, então, que a antropologia filosófica é a herdeira da metafísica e, portanto, deveria ser considerada a filosofia primeira de hoje. Foi por esta razão que se estabeleceu tal disciplina na primeira metade do século passado. Por que desapareceu? Na Alemanha, o desaparecimento desta disciplina se deve à estranha filosofia de Heidegger onde a pergunta pelo ser supostamente substituiu a pergunta pelo homem. Por outro lado, nos países anglo-saxônicos a antropologia filosófica nunca chegou a estabelecer-se porque ali a filosofia continuou compartimentada em disciplinas tradicionais como a teoria da ação, a teoria da mente, etc.
Na realidade, a teoria da ação, por exemplo, deveria ser parte integral da pergunta pelo ser do homem. Naturalmente, alguns filósofos anglo-saxônicos, como por exemplo Harry Frankfurt ou Charles Taylor, têm teorias sobre o ser do homem. Eu não tenho dúvidas de que a nossa autoreflexão, não enquanto indivíduos, mas como seres humanos, continua sendo, como já foi em Platão, a temática central da filosofia. A compartimentalização da filosofia (a filosofia sem temática central) é uma traição à própria idéia de filosofia.
Amanhã, publicaremos a 2ª parte do artigo
TUGENDHAT, E. Nietzsche e o Problema da Transcendência Imanente
Texto escrito em português e revisado por Milene Consenso Tonetto, sendo as correções aprovadas pelo autor.
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