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13 novembro 2010

Nietzsche e o problema da transcendência imanente - PARTE 2


Nietzsche e o problema da 
transcendência imanente
Ernst Tugendhat

Particularmente, o desafio diante do qual nos encontramos frente a Nietzsche consiste na seguinte pergunta: se estamos de acordo que o homem já não pode estar relacionado com algo supra-sensível, é certo que se tenha que entender o ser do homem como vontade de poder? Se não, qual seria a alternativa? Talvez Nietzsche tivesse razão quando mantinha que prescindindo do sobrenatural, temos que continuar entendendo o ser do homem como indo além, como transcendental neste sentido. Mas Nietzsche poderia estar equivocado quando entendeu esta transcendência imanente como vontade de poder. A tarefa consiste, então, em retomar a problemática da antropologia filosófica e repensá-la dando ênfase precisamente à questão da transcendência imanente.


Em primeiro lugar, então, vou examinar que contribuição a esta problemática pode-se encontrar nos autores alemães que trataram da antropologia filosófica nos anos 20. O que menos contribui foi Heidegger. Ele também fala de transcendência, mas num sentido que considero pouco útil. Naquela época, no início do século XX, tinha aparecido um novo sentido para a palavra "transcendência" na teoria do conhecimento.

O problema parecia ser: como sai o sujeito de si mesmo e chega ao conhecimento de objetos da realidade? Esta relação do sujeito com o objeto foi chamada por alguns epistemólogos alemães daquela época de "transcendência": o sujeito transcende a um objeto. Heidegger indicou -como Husserl já tinha feito- que isso era um falso problema. O sujeito não existe primeiro dentro de si e logo sai para o exterior, mas sempre já está em relação com objetos- intencionalmente, como expressava Husserl. Heidegger rechaça este problema epistemológico, mas não consegue prescindir completamente da terminologia. 

Mantém a expressão "transcendência" para a intencionalidade, para a relação do ser humano com entes e a chama "abertura" (Erschlossenheit), mas estranhamente continua pensando que se tem de perguntar por um fundamento desta abertura. A sua tese é que só por ter uma relação de transcendência, tanto com o futuro quanto com o passado, é que o homem está aberto diante dos entes. Eu considero que esta concepção está igualmente errada como a epistemológica e não esclarece nada.

Além disso, ainda que não fosse assim, este conceito de transcendência imanente não representaria uma alternativa à concepção de Nietzsche. Na minha opinião, a antropologia de Heidegger está profundamente equivocada e isto se deve ao fato de que Heidegger repudiava certos conceitos tradicionais que me parecem indispensáveis. Particularmente, Heidegger acreditou poder substituir o conceito de consciência pelo conceito de abertura que por sua vez nunca definiu. Segundo ele, o que os gregos tinham chamado de lógos- a oração proposicional e com ela a racionalidade- seria algo derivado. Foi essa pretensão de chegar a algo mais originário e de destruir a tradição, que, por um lado, levou a um grande êxito público e, por outro lado, não solucionou nada, pois no final deixou o próprio Heidegger num estado semelhante a de um místico hindu que simplesmente repete a sílaba "om, om".

Considero, hoje, que outros representantes daquela antropologia filosófica –Max Scheler e Helmut Plessner- empreenderam um caminho mais produtivo, apesar de nunca terem chegado muito longe nos detalhes. Particularmente, eles se perguntavam: como se distingue a consciência humana da consciência de outros animais? O que é característico do homem? A resposta deles foi: enquanto que um animal encontra-se no seu meio ambiente e reage a ele, no homem tem lugar uma objetivação: ele objetifica o meio ambiente relacionando-se com as coisas como objetos e também objetifica-se a si próprio. Este pensamento está em evidente contraste com o de Nietzsche e, de outra maneira, também com o de Heidegger. O contraste em relação ao pensamento de Nietzsche deve-se ao fato de que este entende seu naturalismo de uma maneira que a diferença com os outros animais parecia secundária: o homem é movido pelo instinto de poder tanto quanto os outros animais. Em relação ao pensamento de Heidegger porque ele recusou o conceito de objeto e negou-se a entender o homem como um animal não aprovando o método de explicá-lo comparativamente (é isto que torna o conceito de abertura nebuloso).

Que conseqüências tem a objetificação indicada por Scheler e Plessner? Vou aterme aqui somente a Plessner. Ele observa duas coisas. Primeiro, o fato de que o homem TUGENDHAT, E. Nietzsche e o Problema da Transcendência Imanente vê-se na objetificação confrontado com seu ser conduz a uma ruptura obrigando-o a pôr-se em questão: como devo viver?; o que devo fazer? Este aspecto, o pôr-se em questão, não se encontra por diferentes razões nem em Nietzsche e nem em Heidegger.

Segundo, o homem não se encontra em equilíbrio nem consigo próprio, nem com o mundo. Por conseguinte, tem de buscar e criar um equilíbrio. Tem que encontrar e criar coisas que contrabalançam o peso, o desassossego, que sente pela própria existência. Plessner enfatiza, tal como Nietzsche, a significação da arte e da criação para o ser do homem. Mas, enquanto Nietzsche tentou com pouca plausibilidade entender a criação como um broto da fonte puramente subjetiva da vontade de poder, Plessner entendeu-a como uma manifestação de seu desequilíbrio e como busca de contrapesos: o ideal não é que o indivíduo imponha-se ao resto do mundo (dominação), mas o encontro de um equilíbrio entre sujeito e objeto.

Talvez o mais importante em Plessner seja que se estabelece um novo sentido de transcendência imanente. Em Nietzsche, a transcendência imanente consistia numa dinâmica de mero crescimento em direção a um além que nunca deixa de ser puramente subjetivo. Na epistemologia, a transcendência consistia numa relação estática entre sujeito e objeto. De igual maneira, fundamentalmente estática, foi a concepção heideggeriana da transcendência como abertura, a despeito de uma certa dinâmica na sua concepção de abertura enquanto desvelamento. Em Plessner, por outro lado, surge o conceito de transcendência que é tão dinâmico quanto o de Nietzsche, mas que não é unilateralmente subjetivo, nem tampouco consiste numa mera relação sujeito-objeto, mas num aprofundamento desta relação. O sujeito não se pode contentar com a superfície das coisas e, por isso, tem que penetrá-las; tem que aprofundar sua relação com elas. 

Assim, constitui-se um "ir além," uma transcendência que não é como em Nietzsche, uma dinâmica simplesmente do crescimento do poder ou da capacidade do sujeito, nem tampouco, como nos epistemólogos e em Heidegger, uma relação entre sujeito e objeto, entre homem e ser, mas um transcender a aparência e a superfície em direção ao fundo das coisas. Poderia ser, então, que o tipo de consciência que o homem tem permite, em todas as suas relações consigo e com o mundo, dar vários passos para este fundo. Mas como devemos precisamente entender isso?

Plessner contentou-se em fazer meras indicações. Além disso, não acredito que seu ponto de partida, nem o de Scheler- a idéia de objetificação- seja já a estrutura fundamental. E também não me parece satisfatório simplesmente constatar, como fez toda aquela antropologia filosófica, uma estrutura em que o homem distingue-se dos  outros animais sem se perguntar como esta diferença pode ter-se desenvolvido no curso da evolução biológica. Parece necessário, então, encontrar uma nova base para chegar a uma concepção mais satisfatória destes conceitos, para entender melhor a transcendência imanente neste sentido de ter que dar vários e sempre mais passos a um fundo das coisas.

Na realidade, já Aristóteles deu uma resposta à pergunta como se distinguem os homens dos animais, que me parece mais produtiva como fio condutor ao invés do conceito de objetificação. Aristóteles fez isso recorrendo à linguagem. Scheler e Plessner não refletiram sobre a linguagem, enquanto que Heidegger falou muito dela, porém, nada dizendo estruturalmente útil. Aristóteles diz que é característico da linguagem humana possuir uma estrutura proposicional. Enquanto a linguagem dos animais tem uma função segundo a qual reagem ao ambiente, a estrutura predicativoproposicional proporciona ao homem a possibilidade de dizer coisas que são independentes da situação de fala. Com isso, Aristóteles vê conectado o fato de que os homens possam falar do bom e, por conseguinte, do justo.

Esta reflexão encontra-se no início da sua Política. Aristóteles conclui que os homens podem formar agrupamentos políticos só porque podem entender mutuamente que algo é bom para eles. Fazendo um parênteses, quero observar que isso demonstra o erro de uma moda recente que consiste em pensar que a sociologia poderia substituir a antropologia filosófica como filosofia primeira. Não pode fazê-lo porque a maneira como os seres humanos reúnem-se em agrupamentos sociais baseia-se, ao contrário de grupos e sociedades de outros animais, nesta capacidade dos indivíduos de se comunicarem proposicionalmente sobre o bom. Enquanto que uma sociedade de formigas, por exemplo, está organizada à base de estímulos químicos, na sociedade humana os indivíduos unem-se uns com os outros por considerações sobre o bom e, por conseguinte, têm a capacidade de separar-se e de dar razões sobre como se uniram. A sociologia tem esta base antropológica.

Para Aristóteles, tem que se entender a motivação para o bom em contraste com a motivação para o prazer. O que distingue a perspectiva do bom da do prazer é a deliberação. O objeto formal da deliberação prática é o bom, enquanto que o objeto da deliberação teórica é o verdadeiro. A característica do homem é que ele fala e pensa em proposições teóricas e práticas e é, por isso, um ente deliberativo que se relaciona com o bom e o verdadeiro. Nenhuma dessas coisas pode ser encontrada nos outros animais.

Confrontado com uma proposição, seja assertórica, seja imperativa, o homem pode consentir ou negá-la e, por isso, pode também pô-la em dúvida, questioná-la e, por conseguinte, deliberar. Confrontar-se com algo dito ou pensado na modalidade da deliberação significa perguntar por razões (o conceito de dar razões surge aqui) e isso significa perguntar-se pelo que se pode dizer a favor ou contra a asserção ou o imperativo e nesta tomada de distância, neste poder de tomar posição a favor ou contra, o homem está livre, tem opções. Deste modo, junto com a linguagem proposicional, aparecem, necessariamente, vários aspectos que representam diferentes lados da mesma coisa: pergunta, deliberação, razões, liberdade. Quando Aristóteles diz que para o entendimento humano a linguagem proposicional (Aristóteles usa a palavra lógos) é essencial, isso significa que o homem é o animal que pode perguntar por razões, o animal racional, ou seja, o ente deliberativo, livre.

Se, agora, confrontamos isso com o que tínhamos encontrado em Plessner, pareceme que se trata de uma estrutura mais clara e também mais fundamental que a objetificação. Plessner insistia que o homem tem que se pôr em questão por estar objetificando as coisas. Todavia, torna-se muito mais evidente o contrário: a razão por que o homem está objetificando as coisas e também a si próprio é que se relaciona a tudo através de uma linguagem proposicional. Um aspecto dessa linguagem é a relação sujeito-predicado. Conseqüentemente, o homem tem que falar das coisas, tem que objetificá-las e, deste modo, chega a ser também objeto para si próprio. E como tudo o que diz ou pensa pode pô-lo em questão, isso afeta também a relação consigo mesmo.

Agora pode-se entender também por que razão uma espécie com esta característica desenvolveu-se na evolução biológica. É certo que isso é uma matéria onde apenas podemos especular. Empiricamente, não sabemos como nossa espécie desenvolveu-se, mas podemos pelo menos fazer uma hipótese que faça sentido. Se simplesmente se diz que o homem objetifica-se a si mesmo, isso é algo que não se entende, que não se pode explicar funcionalmente. Isto também é assim se se diz, como no existencialismo, que o homem é essencialmente livre. Ser livre seria algo sem função biológica compreensível. 

Mas se dissermos que esta espécie tem a capacidade de perguntar por razões, esta é claramente uma vantagem dentro da evolução, pois  implica num novo nível cognoscitivo que permitiu o desenvolvimento do pensamento instrumental em grande escala. Entende-se que a linguagem instrumental tem tido uma função biológica e, uma vez que surgiu, esta estrutura estendeu-se por toda a vida humana.

Amanhã, publicaremos a última parte.

TUGENDHAT, E. Nietzsche e o Problema da Transcendência Imanente
Texto escrito em português e revisado por Milene Consenso Tonetto, sendo as correções aprovadas pelo autor.

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