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14 novembro 2010

Nietzsche e o problema da transcendência imanente - FINAL


Nietzsche e o problema da 
transcendência imanente
Ernst Tugendhat

Finalmente, também o conceito de uma transcendência imanente pode agora adquirir um sentido mais claro. Vimos que em Plessner trata-se de um aprofundamento na maneira como nos relacionamos com objetos. Este aprofundamento adquire um sentido transparente quando o clarificamos por meio do conceito de dar razões. Trata-se agora da tensão entre aparência e verdade ou, na deliberação prática, entre o bem aparente e o bem verdadeiro. A mera opinião seria a aparência e, ao invés desta, se podemos dar razões e sempre melhores razões, passamos de um nível a outro e nisto consiste então a transcendência imanente que parece ser constitutiva do entendimento humano. Há diferentes esferas em que podemos fazer tais passos dando sempre melhores razões e numa conferência anterior falei de dimensões de profundidade. Por outro lado, o que vimos em Plessner, ainda que estruturalmente menos claro, parece que nos leva mais longe. Por exemplo, Plessner aplicou sua estrutura também para a arte.

Neste caso, o aprofundamento não é um aprofundamento relativo a razões. Como, então, entendê-lo? E qual é a conseqüência para a discussão de Nietzsche levando em consideração a concepção que apresentei a partir desta distinção aristotélica? Podemos entender, a partir desta estrutura, o ser do homem na sua totalidade? Ao invés de confrontar-me com estas perguntas diretamente, quero mostrar o que dois pensadores do século XX, que se encontram à margem da filosofia, o psicanalista Erich Fromm e a novelista e filósofa inglesa Iris Murdoch, contribuíram para o problema. Não me importa não chegar a uma posição definitiva. Parece-me mais importante ver o que se pode dizer desde diferentes lados.

Fromm não parte da preocupação dos antropólogos de buscar uma característica central que diferencia o homem dos outros animais, mas parte da pergunta pela felicidade humana e, para isso, baseia-se numa concepção hegeliana. Como se sabe, Hegel tinha desenvolvido uma metafísica segundo a qual todo o ser e, em particular, o ser humano consistia numa síntese de antíteses. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel mostra que o homem não chega a satisfazer-se se somente devora ou domina o que encontra. O que pode satisfazê-lo só pode ser algo tão independente quanto ele, quer dizer, algo que tenha também autoconsciência e autonomia. A mera dominação dos outros não leva a uma satisfação. Com isso, Hegel antecipou a refutação de Nietzsche.

Só no espelho do outro e de um outro reconhecido como igualmente autônomo, o homem chega a uma satisfação. Assim se faz a experiência que só na medida em que se afirma o outro esta afirmação vale a pena. Toda a Fenomenologia do Espírito consiste em graus sempre mais complexos desta simetria. É esta concepção que Fromm aplica à psicologia e à pergunta pela felicidade. O  homem encontra-se, segundo Fromm, em dicotomias: vê-se isolado e só pode chegar à felicidade dando ao outro o peso que dá a si próprio. Fromm demonstra este princípio de simetria, particularmente, em dois aspectos do comportamento humano: no entendimento e no amor. 

No amor, forma-se uma convivência, cujo perigo é a unilateralidade: ou cada parte quer dominar a outra, ou uma quer dominar e a outra submeter-se. Somente se cada um tem suficiente peso e, ao mesmo tempo, aceita a igualdade do outro, ambos podem alcançar o bem-estar. Fromm constrói uma concepção análoga para o entendimento: não podemos chegar a entender uma coisa ou uma pessoa, se somos meramente passivos como uma copiadora. Para que nosso entendimento possa penetrar na realidade além da superfície, temos que ativar o nosso poder imaginativo. Mas se, por outro lado, atemo-nos somente à nossa imaginação, perdemos o nosso sentido de realidade. Mais uma vez, o peso e a ativação do sujeito devem estar em correspondência com o peso e o respeito para o objeto. Em ambos os casos, no amor e no entendimento, trata-se de uma ativação de nossas capacidades dirigida pelo respeito diante daquilo que encontramos.

Daí resulta, para Fromm, uma recusa total da concepção nietzschiana. Vimos que Nietzsche confunde poder e potência. Segundo Fromm, relacionar-se simetricamente com as coisas e com as pessoas depende da ativação das próprias potências. Sustenta que o poder, no sentido de domínio-sobre, é uma perversão do poder no sentido de potência ou capacidade de relacionar-se com o mundo; é uma perversão pela unilateralidade da dinâmica: o querer dominar é uma roda que gira em torno de si mesma e os objetos só existem para serem oprimidos.

Fromm não usa a palavra “transcendência”, mas fala da profundidade da realidade das coisas e das pessoas. Qual é a contribuição de Fromm à problemática da transcendência imanente? Primeiro, com sua insistência em que só assim se pode ser feliz deu um passo que ainda faltava: o aspecto da motivação. Segundo ele, o desejo  de poder nasce da incapacidade de um indivíduo para relacionar-se produtivamente com o mundo. Segundo, em Fromm encontramos conceitos que já tínhamos encontrado em Plessner, mas que estão mais claros: a simetria na relação entre sujeito e objeto, peso e contrapeso.

Há, no entanto, uma diferença estrutural entre o que dizem Plessner e Fromm e o que eu tinha desenvolvido a partir de Aristóteles: aqui, na estrutura proposicional, a ênfase está nas razões; ali, há uma estrutura entre o sujeito e o objeto. Estas estruturas parecem ser dimensões de profundidade num sentido diferente. Pode-se ver bem a  diferença no caso do entendimento, que contém ambas as estruturas: seguramente, entendemos um ente melhor, se podemos justificar nossas proposições acerca dele, mas a proposição é algo diferente do ente. Há dimensões de profundidade que se tem que ver com entes, onde não faz sentido falar de razões: por exemplo, na arte, como fala Plessner; igualmente no amor, que é tão importante para Fromm.

Tentemos, então, outro passo e vejamos o que pode contribuir o pensamento de Iris Murdoch. Referir-me-ei a duas conferências que ela deu nos anos 60 e que se encontram num livro sob o título The Sovereignty of the Good (A Soberania do Bom). Na filosofia inglesa, com as suas compartimentalizações, Iris Murdoch aparece como uma figura exótica. Com efeito, encontra-se mais perto da filosofia alemã e francesa do que da inglesa. Ainda que não use o termo, sua preocupação está voltada para a antropologia. Mais uma vez a pergunta é pela essência do ser humano. Iris Murdoch também usa o conceito de transcendência, mas o seu interesse é menos descritivo e mais normativo. A pergunta é: como devemos ser? Seu termo central é “atenção.” Este termo tomou da mística francesa Simone Weil, que a tinha influenciado profundamente. A obrigação central do homem é, segundo Iris Murdoch, desenvolver uma viva atenção para a realidade. "Realidade" é a sua segunda palavra central. Ela usa-o no sentido da verdade das coisas. A verdade nunca está na superfície e, por isso, a atitude da atenção exige esforço contra a preguiça e o egoísmo.

O que Iris Murdoch quer dizer com "atenção" é semelhante ao que Fromm chama de entendimento equilibrado. Uma das preocupações de Murdoch é mostrar que o problema de abrir-se para a realidade das coisas é universal, igualmente constitutivo da estética e da moral. O característico do belo consiste, segundo ela, em ser o único caso em que a profundidade das coisas aparece de maneira espontânea. Muitas vezes, encontramo-nos espontaneamente subjugados pela beleza de uma coisa e nos esquecemos das nossas preocupações egoístas: presenciamos o ser próprio e independente de algo. É uma experiência da profundidade da realidade. É como se dissesse diante de algo belo, em particular diante de uma obra de arte: isso é mais real que o resto da realidade. Assim a palavra "realidade" adquire um sentido comparativo, tal como o tem em Murdoch o conceito correspondente de atenção. Este sentido comparativo de realidade corresponde ao meu conceito de dimensão de profundidade.

Iris Murdoch mantém que também na moral o importante é abrir-se à realidade complexa da situação. Ela diz que uma vez que a entendemos em todos os seus aspectos, a ação correta surge automaticamente. Para mim, o interessante na posição de Murdoch é a maneira como ela universaliza esta atitude de atenção a outras esferas do entendimento e da ação humana através do termo “bom”. O bom é, para ela, muito parecido com o que chama “realidade”. Agora pode-se ver melhor como pode ver a realidade como um comparativo, pois em "bom" o comparativo "melhor" é o primário. Tudo o que fazemos bem, podemos fazê-lo melhor e todo esforço dirigido ao bom, quer dizer, ao melhor, exige um esforço contra a preguiça egoísta. Isso permite Iris Murdoch aplicar sua concepção a arte: todo artista tenta fazer o que faz tão bem como possa e também todo e qualquer empreendimento humano. Iris Murdoch dá como exemplo o estudo da língua russa que está fazendo: ela se vê confrontada com a complexa realidade deste idioma.

Tem que se abrir a esta realidade e abster-se de suas fantasias e preguiças subjetivas. Uma tal atitude demanda virtudes semelhantes às morais: valentia, humildade, veracidade consigo mesmo, respeito. A mesma coisa se poderia dizer de qualquer coisa que uma pessoa aprende. A aprendizagem humana é diferente da aprendizagem de outros animais. O homem aprende a fazer bem alguma coisa e encontra-se, como diz Murdoch, "numa escala de excelência" em que pode avançar mais ou menos. Podemos pensar, por exemplo, na aprendizagem do balé, de um esporte ou de uma profissão. Este avanço na escala de excelência, diz Murdoch, é o sentido não metafísico da idéia de transcendência. Trata-se obviamente de algo muito similar pluralidade de passos para um fundo do qual falei em relação às razões.

Comparemos, primeiro, a posição de Murdoch com a de Nietzsche: enquanto a transcendência imanente e o sentido da vida em Nietzsche consistia num puro crescimento de si próprio, para Murdoch consiste num crescimento no abrir-se para a realidade e na aprendizagem de uma coisa boa. Poderia-se imaginar um debate entre Nietzsche e Iris Murdoch em que Nietzsche diria que todas estas escalas de excelências seriam simplesmente passos de alguém para poder desfrutar-se de si mesmo.

Naturalmente, se falássemos assim, já teríamos abandonado a idéia do poder sobre os outros e teríamos nos conformado com a de egoísmo. Porém, diria Iris Murdoch, ainda que seja certo que o homem encontre satisfação quando faz bem as coisas, é, em primeiro lugar, notável que grande parte da felicidade humana consista precisamente em fazer coisas boas em contraste com a felicidade e satisfação meramente animal. Em segundo lugar, ainda que seja certo que o egoísmo e o prazer estejam presentes também no empenho do homem para o bem -e que má seria a vida do homem se não fosse assim! - o fato de que o egoísmo sobrepõe-se ao empenho de fazer coisas boas e ao sentido da realidade conduz a uma dialética: num caso de conflito, um ser humano encontra-se diante da pergunta se quer dar prioridade à realidade e ao bom, ou ao próprio prazer. 

Um exemplo seria amar uma pessoa. Nietzsche tinha insistido no aspecto possessivo de todo amor e este aspecto é inegável e está igualmente em tudo o que queremos fazer bem. Por outro lado, amar uma pessoa, por exemplo, implica estar impressionado pela profundidade de seu ser -pelo que Iris Murdoch chama a sua realidade- e é isso o que abre a possibilidade (ainda que seja só uma possibilidade) de preferir a felicidade desta pessoa a possuí-la. Há um aforismo em Nietzsche (Humano, Demasiado Humano §57), que diz que ainda quando uma pessoa se sacrifica por outra ou por uma coisa o faz para gozar precisamente isso e que neste caso é o gozo de si proprio uma vez mais a sua única meta. Mas, aqui, o argumento em favor do mero egoísmo perde o sentido porque o altruísmo consiste precisamente em converter em minha meta o fazer algo para alguém.

A contribuição da posição de Iris Murdoch ao problema da transcendência imanente consiste na sua orientação pelo conceito de bom. Já no que citei de Aristóteles estivemos confrontados com o conceito de bom, mas ali o sentido deste conceito parecia restringir-se ao que é bom para alguém. Como Murdoch usa este conceito, todavia, ele aplica-se a tudo o que se pode fazer bem e faz surgir assim um uso que vai além do proposicional e do poder dar razões. Aqui devo lembrar que não pude incluir no meu esquema proposicional a arte. A meta da arte criativa é fazer uma coisa o melhor possível. Aqui o bom e o melhor adquirem um uso adverbial e ainda que este uso inclua também razões isso não parece esgotá-lo. Murdoch aponta a dimensões de profundidade -as dimensões de transcendência imanente- que não são dimensões de razões. 

Não podemos subordinar o melhor sob o conceito de razões, mas podemos fazer o contrário: pode-se subordinar a pergunta por razões à busca pelo melhor, pois aquele que pergunta pelas razões pergunta como deveria ver as coisas, quer dizer, como é melhor vê-las. O artista criador não delibera sobre razões, mas delibera. Ele tem uma meta que aspira, tem um espaço livre no que está criando e quando delibera não pergunta por razões, mas como o poderia fazer melhor. Aparece, então, que o conceito de deliberação é mais amplo que a deliberação sobre razões ou, como fala Platão, o conceito de bom está "além" do de ser.

Agora posso explicar porque considero a antropologia de Heidegger tão errada. Heidegger interpretou o conceito de verdade de tal forma que tinha que perder a dimensão de profundidade e o conceito de bom nem aparece. Conseqüentemente, também desaparece a deliberação e isto resulta no conhecido decisionismo da sua postura existencial. Mais tarde, na serenidade para o ser, isso torna-se simplesmente o contrário. A deliberação é a busca pelo bom juízo e isso desaparece em Heidegger. O que Heidegger chama abertura é, na verdade, uma fechadura -a fechadura das dimensões de profundidade.

A volta de Murdoch às especulações de Platão sobre o bom permite-nos estender o conceito das dimensões de profundidade e entender o que distingue o homem dos outros animais de maneira mais geral. Mas isso não afeta minha especulação acerca de como entender esta característica dos homens na evolução biológica. Disse que me parecia provável que o poder de perguntar por razões desenvolveu-se nos homens a partir do poder perguntar por razões instrumentais e isso se pode manter igualmente a respeito da extensão do conceito de deliberação sobre o que é melhor. Esta maneira de relacionar-se com o mundo e consigo mesmo pode ter surgido com a pergunta pelo que é instrumentalmente melhor e, uma vez que surgiu, esta capacidade tinha que se estender às outras atividades humanas. Esta maneira de ver é mais naturalista que a de Nietzsche sem levar a uma concepção reducionista de entender o ser do homem.

O que devemos entender pela palavra "bom"? Esta palavra refere-se a um comparativo de preferência e que, além disso, tem uma pretensão de objetividade ou pelo menos de intersubjetividade. Quando dizemos que uma coisa é melhor, trata-se, primeiro, de uma preferência e, segundo, de uma preferência da qual se supõe que não é só minha. O conceito de preferência remete a um querer e este o temos em comum com muitos outros animais. O que os outros animais não têm é a capacidade de preferir explicitamente uma coisa ao invés de outra e de compreender-se no interior de uma escala em que uma multiplicidade de coisas ou ações são classificadas como melhores ou piores. Isto equivale a dizer que nos encontramos em dimensões de profundidade.

Ainda devo esclarecer a ambigüidade que consiste na diferença de dimensão de profundidade que apresentei a partir de Aristóteles, -que é a dimensão de deliberação- e a dimensão de profundidade como se apresentou a partir de Plessner e Fromm que é uma dimensão entre sujeito e objeto e que conduzia à idéia de simetria. Acredito que estes dois tipos de dimensões de profundidade são diferentes, mas co-originários. Uma vez que surge uma linguagem proposicional, surge, por um lado, a pergunta por razões e, por outro lado, a objetivação de entes, seja no mundo, seja no sujeito mesmo. 

Com isso surge também algo que de alguma maneira está na base de toda a moral humana: com a consciência de si e com o saber dos outros, que também têm uma consciência de si, aparece necessariamente a idéia de que os outros são como eu e isso significa que junto com o egoísmo surge a possibilidade de um altruísmo explícito que é uma coisa muito diferente do atuar altruísta, segundo regras fixas, que se encontra em outros animais. Ora, se Fromm tem razão, este altruísmo especificamente humano não é uma mera possibilidade abstrata. É, naturalmente, só uma possibilidade, mas uma possibilidade real e, como tal, faz parte do que é para os homens uma vida boa.

TUGENDHAT, E. Nietzsche e o Problema da Transcendência Imanente
Texto escrito em português e revisado por Milene Consenso Tonetto, sendo as correções aprovadas pelo autor.

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